18 de novembro de 2014

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.


Murilo Mendes
quando Ulisses regressa a Ítaca, não a vê. está adormecido e quando acorda não a reconhece. alguém lhe repete o seu nome, mas Ulisses não a vê. talvez nem acredite que essa terra exista para além da sua memória.
a estação que o acolhe é doce e são sobretudo os cheiros que, a cada passo dos seus passeios, o levarão a reencontrar a cidade que mudou. o conforto de ninguém o reconhecer (mistério cujo desvendamento não para de adiar), fá-lo aventurar-se na redescoberta das ruas e na violência das suas memórias. de regresso, de regresso. a princípio olha apenas para o céu. as suas cores parecem-lhe mais vivas do que antes, mas não pode negar que este parece ser o mesmo céu que o guiou na sua viagem. depois começa a ver as coisas abaixo do céu. o musgo dos telhados. os pardais que em bando procuram comida no chão e não levantam voo à sua passagem. a silhueta ao longe de um lavrador. uma algazarra de crianças. o som dos seus passos sobre a terra, sobre Ítaca (repete a si próprio o nome). este é o céu de Ítaca e são estas as suas coisas. a pouco e pouco Ulisses vislumbra-se a si próprio na relação com elas e de certa maneira isso alarma-o pois, ao contrário dos perigos que encontrou, percebe agora que Ítaca é intransponível: não tem centro. é feita de camadas de imaginação. as folhas das tílias começaram a cair e é isso que permanece. de resto, tudo o que fez não passa de um esboço, como um quarto sem telhado. Ulisses caminha de rosto oculto e apercebe o extraordinário pelo mesmo movimento que o desfaz. 

17 de novembro de 2014

o palácio fronteira foi o lugar que mais amei ao longo de dezenas de anos em Lisboa, sem nunca lá ter entrado. não queria ir, queria amá-lo à distância, imaginá-lo, seguir o seu rasto como uma coisa viva. li muito sobre ele. há um ano, apenas, fui lá. aconteceu por mero acaso, falei nele a um amigo, que nunca tinha ouvido falar e me perguntou de seguida «queres ir lá amanhã?», convite a que, para minha surpresa, finalmente, o meu coração não se fechou.
entre as muitas histórias que li sobre ele, havia a história do seu proprietário Fernando Mascarenhas. conheço pessoas que o conheceram e me trouxeram essas histórias em segunda mão, desconhecendo no entanto o porte do meu fascínio enquanto as ouvia. achava curioso que a descrição do marquês exigisse tantos ou mais pormenores que a descrição do próprio palácio: as pessoas chegavam a descrever o tom da sua voz. morreu na semana passada sem que tivesse chegado a conhecê-lo. tinha julgado que era inevitável encontrarmo-nos um dia, que por dezenas de anos que passassem haveria de chegar o dia certo, e lamentei que não fosse também ele um palácio, com paredes sólidas e um cortejo de gerações a cuidar da sua manutenção. no dia em que visitei o palácio fronteira, fiquei a saber também por acaso, que ele estava numa sala contígua àquela em que me encontrava. na altura bastou-me isso, decidi que não o veria nesse dia. hoje deparo-me com a força da fatalidade, imensuravelmente superior à do meu destino, pois até as nossas fantasias lhe pertencem.
que digo... até? mas o que é o meu destino senão uma fantasia do princípio ao fim? todas as portas que atravesso, as pistas que persigo, estes sons que redefinem e transfiguram o espaço, estou a sonhá-los, a imaginá-los. são eles a única coisa que entendo em estar viva, o mundo escapa-me com violência. não sei, não posso explicá-lo, não posso entendê-lo. sem dúvida por isso ele ainda me espante.



Ângelo de Sousa, A Mão, 1972.



Ângelo de Sousa, Sem título (mão), 1973.
Ir além dos limites consiste em pôr-se à prova em relação à sua identidade, etc., em relação ao fechamento das suas fronteiras.

Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado.
(...) a pessoa perspicaz, a quem interessa o fenómeno vivo e não a palavra (...).

Johann Wolfgang Goethe, O Jogo das Nuvens
voltei a sonhar com as minhas mãos e, como sempre, quando acordei não me lembrava. foi quando estava a ver um vídeo na exposição da Sara & André que as imagens voltaram, como memórias de um acontecimento ainda a fazer-se, porém já irrecuperável e inacessível.
o vídeo chamava-se mãos, cabelos e primeiro vi os cabelos. no topo de duas cabeças que se moviam lentamente, o brilho dos cabelos, negros e louros, tenuemente iluminados diante de um fundo negro. enquanto assistia, automaticamente imaginei as mãos, antes de aparecerem. imaginei dois pares de mãos erguidas, mostrando claramente os dedos, rodando sobre si para mostrar a palma e as costas. mal imaginei a imagem, dois pares de mãos aparecem no écrã que, para meu choque, se tocavam. tocavam-se como se não pudessem existir separadamente e eu nem sequer tinha imaginado a possibilidade de se tocarem. o meu sonho reapareceu nesse momento, confusamente, esparso e em simultâneo às perguntas. porque nem me ocorreu que as mãos se pudessem tocar? de contrário, na minha imaginação, separei-as claramente, exatamente como se não pudessem tocar-se, porventura até como se não pudessem tocar em nada. umas mãos não são feitas para tocar, agarrar, pegar, escarafunchar, amassar, apalpar? que função lhes reservo para além dessa, que a torna impura e impede? terei destituído as minhas mãos de qualquer função?
no meu último sonho aconteceu uma coisa que nunca acontece, aconteceu aquilo que não pode acontecer, aquilo que é proibido, tabu: verem as minhas mãos. a mera sugestão da possibilidade de tocá-las é já o horror que transforma o sonho num pesadelo de tal forma insuportável que me escondo imediatamente na vigília. um ver que é tocar, um ver que me atinge, me fere.
enquanto caminhava na rua pensava nas minhas mãos e em como novamente não devia ter saído de casa sem as arranjar. precisava de cortar as unhas, cortar pequenas peles que crescem sobre as unhas, cortar todas estas coisas que continuamente crescem e se estendem a partir delas. excrescências que, se descontroladas, podem privar-me da sua existência - talvez devesse colocar sua entre parênteses - como no sonho em que as mãos se transformavam num casulo de pele branca. eu pensava nisto e de vez em quando olhava com repulsa para elas, repulsa e vergonha, quando subitamente, a pessoa que caminhava a meu lado, também as vê. assim que as vê olha-me nos olhos e diz «tens de arranjar as mãos.» não chego a responder. acordo.

13 de novembro de 2014

The words the happy say
Are paltry melody
But those the silent feel-
Are beautiful-

Emily Dickinson
There are moments when the veil of hope is finally torn apart and the suddenly liberated eyes see their world, as it is, as it must be. Alas, it does not last long, the revelation quickly passes, the eyes can only bear such pitiless light for a short while, the membrane of hope grows again and one returns to the world of phenomena.
Hope is the cataract of the spirit, which cannot be pierced until it is completely ripe for decay. Not every cataract ripens, and many a human being can even spend his whole life within the mist of hope. And if the cataract may have been healed for the moment, it always forms itself again immediately, as does the hope.

Samuel Beckett, German Diaries 1936-1937

12 de novembro de 2014

Fiz muitos esboços a partir da observação da natureza, tentando fixar no papel aquilo que é móvel, de acordo com a natureza deste conceito (...).

Johann Wolfgang Goethe, O Jogo das Nuvens