18 de junho de 2014

Escrevo várias horas por dia há vários dias e quando encontro uma pessoa que me pergunta o que ando eu a fazer respondo, depois de uma breve hesitação, «nada». Quem não publica não escreve e eu hesito porque quero formular uma resposta que evite em definitivo a pergunta que se segue, «onde posso ler o que escreves?», a que daria uma resposta estruturada desviando vigorosamente o interesse e sem fornecer quaisquer indicações.

16 de junho de 2014

Viagem de comboio entre Braga e Porto, verão de 2013. Enquanto estamos parados em Terrugem, um rapaz montado num enorme cavalo castanho luzidio atravessa a estação e sai para a vila. Já com o comboio em andamento reparo ao longe, entre o verde das vinhas, das figueiras, dos pinheiros, dos pomares, a pedra dos muros e das casas, diante de uma casa grande à beira da estrada que atravessa a pequena aldeia pela qual passamos, está montada ao sol uma grande mesa para o jantar, com muitas cadeiras à volta. Apetece-me entrar nos bosques e arrancar eucaliptos. Vim para os bosques para arrancar eucaliptos deliberadamente.
Água a correr, um vespão, uma lagartixa, rãs, outros insetos, pássaros, coelhos, galinhas, portas que se abrem e se fecham, as maçanetas dessas portas que rodam, passos e o restolhar das batinas, orações, cânticos, fogo a crepitar nas lareiras e na cozinha, pratos, talheres, vento, instrumentos agrícolas, a terra a abrir-se pelo machado, folhas que caem: o silêncio neste mosteiro correspondia apenas à ausência da fala, uma espécie de conformidade ao tempo, esse perversamente auditivo.
Depois da minha visita peço um copo com água. O segurança, simpático e familiar, faz-me descer à cozinha dos funcionários; fico contente por poder conhecer também estes espaços, ocultos, destinados ao trabalho de hoje. Apesar de estar uma garrafa de água do Luso em cima do balcão, abre a torneira para encher o copo que me vai oferecer, o que me parece uma indelicadeza enquanto reparo ao mesmo tempo que a água que cai no copo tem uma limpidez estranha, uma transparência quase perturbante. E sabe bem. À medida que a bebo, recordo qualquer coisa que não consigo distinguir, como se a cada golo recuasse com assombro de regresso a um gesto comum, só meu. Estou quase no fim quando o segurança revela que é água da fonte, que toda a água que abastece o mosteiro provém dela e que os funcionários - diz risonho e satisfeito - enchem garrafões de cinco litros para levar para casa. A água da fonte é a água do poço da casa dos meus bisavós, e não sei se o tempo que vivi morrerá comigo ou se é absoluto como o vejo, mas sou ainda essa criança, diante do mesmo poço e da mesma água. O táxi chega, nunca vi um táxi assim. É um brilhante Mercedes negro, sem placa nem número, sobe a ladeira a grande velocidade e para à frente da entrada principal do mosteiro. O taxista sai, abre-me a porta e chega o banco ao lado do condutor para a frente, para que eu fique com mais espaço atrás. Despeço-me do segurança com um aperto de mão e quando a porta do táxi se fecha sou fulminada por uma melancolia cortante, que me envolve como uma serpente mata. Procuro aflita a razão mas não consigo evitar comover-me. Sei apenas que me despeço da beleza e que o silêncio que subitamente se abate dentro do carro me submerge.
The idea that the dead might not be utterly gone has an irresistible magnetism. (...). After a loss, you have to learn to believe the dead one is dead. It doesn’t come naturally.

Megan O'Rourke

15 de junho de 2014

Por vezes, mesmo quando escrevo no meu diário, hesito entre manter segredos e escrever sem explicar nada. A incerteza de chegar a tempo de destruir tudo antes que alguém conheça a miséria da minha infância que perdura, domina-me. Sou como os tementes a deus, desconfio da disciplina como do diabo que macula o que é puro e ao mesmo tempo estou presa a ela, como a uma oração.
Coisas que gostaria de corrigir:

À pergunta «Mas como é que isso se faz?» gostaria de ter respondido, procurando o olhar da única pessoa que pareceu entender aquilo que a motivou, «Queres responder T.?».

Em vez de um impropério, assumir o nada.

Ter escrito mais.

Em vez de silêncio, a gargalhada que abafei.

Que peremptória, lúcida, sagaz, não desejasse salvação, e fosse modesta a esperança que inesperadamente faz vibrar a morte.

13 de junho de 2014

Foi a escrita que me revelou os homens e nada mais.
Corpos com devastações assombrosas
E um sorriso delicado a cobrir as extremidades
Embora com algumas, premeditadas, falhas
Através das quais se mostram 
Fortalecidos por silêncios implacáveis.
Foi-lhes destinada a mais ingénua malícia
De tal modo que quase sangra
Por gozar de uma atenção vegetal,
Divina.
As suas vozes tremem mas quem ouve o seu tremor?
¿Para onde vão estes fogos
Onde o tempo sucumbiu
E continua a sucumbir
Para sempre.
Toda a carne é muito mansa,
Como as torturas da memória e da certeza.
O grito espantoso, infatigável,
Possui a ociosa luminosidade das vagas
Repelindo obstinadamente o vácuo
E intoleravelmente a própria praia.

12 de junho de 2014

Vou ter de achar uma linguagem nova.

Etty Hillesum, Diário 1941-43.

9 de junho de 2014

Como os habitantes da cidade que Chihiro visita, perdi a memória do meu nome e não posso regressar àquilo que me pertence. Há no meu corpo um tremor ligeiro, assim as folhas de uma árvore cuja imobilidade é permanentemente perturbada por elementos exteriores: o tabaco, o jejum.
A loucura espreita, insidiosa e leve. O sol que brilhe. O mar que receba os rios. Viverei como as moscas, que no seu movimento descrevem o padrão insignificante do silêncio.

8 de junho de 2014

Os homens têm casas, as mulheres têm habitats.
Um habitat é, por definição, o que está para além das imagens.

3 de junho de 2014

Será certamente pueril da minha parte mas nunca até ontem me tinha apercebido que nada me revolta tanto quanto a morte. Parece uma constatação evidente, por ser a única coisa em relação à qual somos verdadeiramente impotentes, mas nunca tinha pensado nisso de forma tão inequívoca como ontem perante um caixão, a família do morto, e um padre que falava de felicidade e de paraíso a apontar com os dois dedos indicadores para o céu. Talvez porque o morto não me pertencesse tivesse sido possível pensar. Não me lembro de alguma vez ter falado com alguém sobre fé nem sobre a ausência dela, a minha. Não creio que se possa falar disso e portanto não percebo como se podem fazer palestras sobre isso. No fundo não acredito que alguma palavra tenha o poder de evangelizar. Muito menos quando morre alguém que amamos. Nesses momentos devia respeitar-se o silêncio que fica.

1 de junho de 2014

Desço a colina ao encontro dos braços de sol - soberanos, maciços - desta manhã, animada pelas roupas leves que vesti, pelo vento fresco que toca a superfície da pele do pescoço e das pernas e pelo rumor dos passos e da respiração das pessoas a entrar e a sair do comboio à beira rio. Quando entro no jardim -  circular, que outra forma mais bela para um jardim? -, um cheiro atordoa-me ao ponto de me fazer parar, como um acidente.
«De onde vem de onde vem?» penso num brado abafado, enquanto percorro com dificuldade um obscuro túnel temporal cheio de lapsos e desvios insidiosos. E a dificuldade é imensa. Essa luta frágil, oca, frívola, propagava a leviandade que atrás me tinha trazido alegria. Não sabia onde estava e não podia caminhar.
Encontrei o cheiro não sei quanto tempo depois e quase nenhuma imagem. Um som abafado de crianças e de água e outro cheiro, a cloro, razão da dificuldade em reunir-me à memória do perfume deste jasmim, pois estava misturado. Sobre a ponte, que atravessava todos os dias a caminho da piscina, um tapete vermelho com bolas salientes onde me demorava a passar, os peixes dentro da água verde e os chorões debruçados sobre o rio. É sempre a mesma vertigem e sempre o mesmo inconsolado regresso a casa.

31 de maio de 2014

Aprendi cedo que o ser das coisas é independente daquilo que possamos ter a dizer sobre elas. Através de dois pormenores que aos meus olhos alcançaram relevo, o passado e o presente eram iguais mas o futuro também.
É a imaginação que nos aproxima da beleza, e a proximidade que convoca a sua legitimação. Gostava de ter inventado a palavra rotunda, mas alguém teve ideia igual e isso é como a tua nudez ser um facto apenas quando te despes. Tiras a roupa e existes todo.

Raquel Nobre Guerra

19 de maio de 2014

No deserto, à hora do sol inclemente, é possível ver uma formiga a quilómetros de distância.
Encontrei ontem o caderno onde escrevi pela primeira vez este sonho, ao acordar, em mais de quatro páginas A4.

18 de maio de 2014

Observo um bando de gaiatos de dentro da minha carcaça sem nostalgia. O ímpeto da minha melancolia aborda-me com doçura e alastra sobre a profunda, vasta planície silenciosa, libertando-me a uma pobreza pura. Sem assombro, eu estou aqui.

17 de maio de 2014

Como o humor se torna uma violência para aquele que esgotou tudo. Não porque haja generosidade no riso, que assim se tornasse impossível, mas porque o que há de comum a todas as formas de humor, aquilo que há de mais primário no riso, é a sua inexpiável crueldade.

6 de maio de 2014

- Mãe, o sangue da beterraba é como o nosso?
Acordei ao ser catapultada na direção inversa do túnel pelo imenso riso de alguém que nunca cheguei a ver e que me envergonhava intimamente. Quando abri os olhos, a pessoa que estava sentada ao meu lado, com os braços e o tronco em repouso sobre o meu corpo, levantou-se  sobressaltada pelo som de uma máquina que irrompeu o silêncio, aliviando-me do peso. Consegui ver um tubo que descia do meu rosto para o lado direito da cama. Estava lasso, percebi que podia mexer um pouco a cabeça e voltei-a lentamente para o lado esquerdo, de onde vinha a luz. Há um mês que não me mexia.
Era uma luz amarela, crepuscular, que passava através do vidro de uma pequena janela bastante alta, e iluminava um dos cantos da sala. Tudo estava imóvel em meu redor, não havia ninguém, nem nas outras camas nem na sala e o único som que podia ouvir vinha das máquinas, suave mas implacavelmente ritmado. Sabia onde estava, ou melhor, sabia a que história correspondia aquela imagem, aquele lugar, aquela pessoa ali deitada ligada a umas máquinas, mas ao mesmo tempo era uma imagem, e portanto uma história (do lugar e de mim própria), absolutamente indefinida, nem real nem irreal. Não sentia nada. Subitamente um ramo de plátano surge lá fora diante da janela e começa a bater contra o vidro, empurrado pela força do vento. O ritmo desse som, perfeitamente claro, impôs-se, fazendo-me esquecer aquele que soava no interior. O ramo, as folhas no ramo e as bolotas entre as folhas, batiam na janela, recuavam e voltavam a bater numa cadência instável, com a luz oblíqua de um fim de tarde (de março, soube mais tarde) a passar entre eles. Foi nesse momento que vi a vida pela primeira vez, o seu intenso ininterrupto movimento. Eu vivia.