15 de agosto de 2016

nunca se sabe quando uma decisão não se torna o início de uma catástrofe. o fogo de artifício soa ao longe, os cães chiam, carros passam sobre a ponte em dois sentidos, aparentemente tudo está bem. mas num momento tudo muda, o silêncio expande-se, as pontes caem e nós, sem sabermos como, encontramo-nos em becos sem saída. contudo, o que é o amor senão um beco sem saída?

14 de agosto de 2016

Gosto do meu trabalho nas urgências. Sangue, ossos, tendões parecem-me afirmações. Fico fascinada com o corpo humano, com a sua resistência. Graças a Deus — porque as radiografias e a petidina vão demorar horas. Talvez seja mórbida. Fico fascinada com dois dedos num saquinho, com a navalha de ponta e mola reluzente a sair das costas de um chulo. Gosto do facto de, nas urgências, tudo poder ser remediado, ou não.
Códigos Azuis. Bem, toda a gente adora os Códigos Azuis. É quando alguém morre — o coração pára de bater, eles param de respirar —, mas a equipa das urgências pode, e muitas vezes consegue, ressuscitá-los. Mesmo que o paciente tenha uns oitenta anos estafados, é impossível não se ficar empolgado com a emoção do processo, pelo menos durante um tempo. Salvam-se muitas vidas, vidas jovens e proveitosas. (...).
Os ciganos são mortes boas. Eu acho... as outras enfermeiras não, e os seguranças também não. Há sempre dezenas deles que exigem estar com o moribundo, que o beijam e o abraçam, a desligar e a estragar os televisores e os monitores e o resto dos aparelhos. A melhor coisa nas mortes ciganas é eles nunca mandarem calar os miúdos. Os adultos clamam e choram, mas todas as crianças continuam a correr e a brincar e a rir, sem que lhes seja dito que devem estar tristes ou mostrar-se respeitosas.

Lucia Berlin, Bloco de notas das urgências, 1977, in Manual para mulheres de limpeza.
o envelhecimento sobrepõe-se à nossa vontade e não é possível falar dele senão como uma fase de desenvolvimento. os auto-retratos confessionais excedem o sentido da vida e tornam-se depoimentos de sobrevivência onde o Belo e o Feio exercem a sua autoridade. as raízes, a família, o conhecimento, criam, afinal, espaços de onde desaparecemos, a identidade organizando-se como uma malha desadequada, apenas um reflexo dessa entrega, ainda assim em constante renovação. em última instância, o que está em causa não é a natureza do tempo mas sim a variedade da fome e o seu funcionamento transgressivo na nossa história.

8 de agosto de 2016

5 de agosto de 2016

da forma como aquilo aconteceu, ficou convencido de que não mudara completamente, embora acreditasse que tudo o que ela disse era verdade. caminhavam devagar sobre a relva bravia. é preciso cortá-la, disse-lhe. temos de arranjar uma máquina, respondeu ela, achas que podemos pedir emprestada a alguém? um pouco ansioso disse-lhe que deviam ter dinheiro para pagar a um jardineiro e comprar uma. ela notou. perguntou-lhe se alguma coisa não estava bem. ele fitou-a nos olhos e sorriu na obscuridade. os olhos dela eram profundos e venenosos quando estava desconfiada. vais-me deixar?, perguntou. ainda não.

4 de agosto de 2016

Balada Amarilla IV

Sobre el cielo
de las margaritas ando.

Yo imagino esta tarde
que soy santo.
Me pusieron la luna
en las manos.
Yo la puse otra vez
en los espacios
y el Señor me premió
con la rosa y el halo.

Sobre el cielo
de las margaritas ando.

Y ahora voy
por este campo
a librar a las niñas
de galanes malos
y dar monedas de oro
a todos los muchachos.

Sobre el cielo
de las margaritas ando.

Federico García Lorca

3 de agosto de 2016

31 de julho de 2016

Il me semble que, chez un poète, les hallucinations auditives sont en quelque sorte une maladie professionnelle. Les poèmes naissent ainsi – cette idée se retrouve chez de nombreux poètes, chez Mandelstam comme dans le ‘Poème sans héros’ de Akhmatova : on entend résonner dans ses oreilles une phrase musicale obsédante, floue d’abord, précise ensuite, mais encore sans paroles. J’ai eu plus d’une fois l’occasion de voir Mandelstam essayer de se débarrasser d’un air obsédant, d’y échapper… Il secouait la tête comme s’il avait pu le faire comme une goutte d’eau entrée dans son oreille pendant le bain. Mais rien ne pouvait le faire taire : ni le bruit, ni la radio, ni les conversations dans la même pièce. Akhmatova a raconté comment, lorsque lui était venu son ‘Poème sans héros’, elle était prête à faire n’importe quoi pour s’en débarrasser. Elle s’était même mise à faire la lessive, mais rien n’y fit. À un moment donné, des mots surgissaient dans la phrase musicale, et alors les lèvres commençaient à remuer. Il doit y avoir quelque chose de commun entre le travail du compositeur et celui du poète, l’apparition des paroles étant le moment critique qui distingue ces deux formes de création. Parfois, un motif venait à Mandelstam pendant son sommeil, mais une foi réveillé, il ne se souvenait plus des vers qu’il avait composés en rêve. J’avais l’impression que les vers existaient avant d’avoir été composés. (Mandelstam ne disait jamais qu’il avait “écrit” un poème. Il le “composait”, puis le notait.) Tout le processus de la composition consistait à capter avec attention, puis à rendre manifeste l’unité de l’harmonie et du sens préexistante et venue on ne sait d’où, qui se matérialisait peu à peu dans des mots. Le dernier stade du travail consistait à nettoyer le poème des mots fortuits, n’appartenant pas au tout harmonieux avant qu’il se manifestât. Ces mots qui s’étaient glissés par hasard avaient été utilisés à la hâte, pour remplir des blancs au moment où l’ensemble prenait forme. Ils étaient là, et les supprimer était un gros travail. Au dernier stade, il fallait s’écouter douloureusement soi-même, pour trouver cette unité objective et parfaitement exacte qu’on appelle un poème. […] Dans le travail de création poétique, j’observais deux “soupirs de satisfaction” et non pas un : le premier, lorsque apparaissaient les premiers mots d’un vers ou d’une strophe, et le second lorsque le dernier mot précis chassait les intrus qui avaient pénétré dans le poème par hasard. Alors le processus d’écoute de soi-même, celui-là même qui préparait le terrain au dérèglement de l’oreille interne, à la maladie, s’arrêtait. Le poème semblait alors se détacher de son auteur et cesser de le torturer par son bourdonnement. Le possédé était libéré. Io, la pauvre vache, avait échappé à la guêpe. Si le poème “ne se détache pas”, disait Mandelstam, c’est qu’il y a en lui quelque chose qui ne va pas, ou bien qu’il reste “encore quelque chose de caché”, c’est-à-dire un bourgeon d’où cherche à percer une pousse nouvelle ; autrement dit, le travail n’est pas terminé. Lorsque la voix intérieure s’était tue, Mandelstam avait hâte de lire son nouveau poème à quelqu’un.

Nadejda Mandelstam, «Maladie professionnelle», Contre tout espoir.

28 de julho de 2016

em agosto, escreveu: «tenho de evitar o instante a qualquer preço». esta ideia, transformava completamente a sua noção dos corpos, da infância, da loucura e da morte. o que é diabólico deve permanecer incompreensível e isso parecia-lhe agora completamente evidente. dito de outra maneira, a honra, mas também o horror, deixam ambos efeitos devastadores. uma liberdade estranha, como um fogo ou uma malícia, chegou-lhe para companhia e percebeu que aquele era o lugar do segredo que a língua possui. a glória exibe-se mas a verdade é impassível.

27 de julho de 2016