3 de julho de 2016

Temo as grandes alegrias que parecem anteceder grandes catástrofes.

Ricardo Piglia
com a mesma naturalidade, uma alegria alucinante, muito próxima do sonho, regressou e fixou-se ameaçadoramente. tudo estava deserto. a matéria acumulada em enorme espessura difundiu-se como sujidade e esvaziou-se. a realidade prosseguia por sua própria conta e risco, como uma contradição ou um animal inocente. mas o seu coração, transbordante, através de todas as metamorfoses mostrava agora a sua repugnância. na verdade, sempre lá tinha estado.

2 de julho de 2016

quantas coisas surpreendem na vida se o que surpreende é letal?

30 de junho de 2016

Aquele que se sente perseguido muito depressa passa a perseguir, ou talvez se sinta perseguido porque não se atreve ou não sabe explicar o que persegue.

María Zambrano, O Homem e o Divino.
Como tudo é vão!
Arrasa uma cidade,
ergue-te do pó dessa cidade,
assume um cargo
e finge,
para evitares expor-te.

Cumpre as tuas promessas
diante de um espelho cego no ar,
diante de uma porta fechada ao vento.

Virgens são os caminhos nas escarpas do céu.


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado.

27 de junho de 2016

um casal de turistas de banho tomado e perfumados, ela com bijuteria cara e maquilhada, ele de fato azul, gravata e lenço, ambos loiros, passa ao lado de dois caixotes de lixo cheios rodeados de um monte de sacos de lixo empilhados num bairro lisboeta. a acreditar na sorte e ao que parece, não os viram. sobem a colina sorrindo um ao outro, alheados da cidade onde passeiam, de visita. passando ao seu lado, desvio o olhar, e é isso o que de mais fecundo e decisivo tenho, precisamente agora.
é certamente admirável. previ o fracasso desde sempre, mas não me atrevi a perguntar pela estranheza que ocorre como um gemido fruto de uma epidemia. sou culpada. tenho uma língua.
o que a confiança exclui, continua a crescer como uma hera, constante e harmonioso, até que, livre de juízos e de um dia para o outro, desaparece, dando lugar ao que ocultava.
saio agora para os jardins
para que aquilo que é
se faça sob a luz.
O mais valioso nos versos e na vida é aquilo que chegou involuntariamente.

Marina Tsvetaeva [Марина Цветaева], Indícios terrestres.

24 de junho de 2016

o que admiramos nos loucos é a perfeição das suas solidões.
mal o disse, bateu nas coxas, no entanto com uma eficácia duvidosa, resultado de uma dieta de emagrecimento. face a face, lúcidos como um diabo, observavam a mutação daquilo que não sabiam e nenhuma explicação parecia suficiente. eram agora reféns do momento. qualquer palavra teria sido alvo de cinismo e, por isso, o silêncio prevaleceu, ainda que nele houvesse um efeito surpresa: viram-se envelhecer com uma indecência indigna, de repente.

23 de junho de 2016

R. tem os nós dos dedos salientes,
mais salientes que os das amigas
com quem se encontra
por vezes
embora no geral
sinta que está cercada de bobos
e se admira de viver
em tamanho perigo
e por isso ri
e se espanta.

22 de junho de 2016

os gatos sentados no parapeito das janelas

não havia um único
que não estivesse preparado
para o primeiro momento.
fico imóvel, como um animal alegre, à entrada do frigorífico, porque a matéria adere à matéria, e me vejo na abertura branca, sem mim, não como uma ausência mas sim como um milagre, sem felicidade ou infelicidade, como um dom, ou um delírio, por exemplo, através do qual seria possível escorregar se os olhos não ficassem aterrados com o vácuo.

20 de junho de 2016

na gaita
do amolador
soa um adágio
que marca a hora
leda, branda, equíssima
do meu encontro com a terra
tudo o resto 
que sob a pele
sob os nervos
pensa e pressente
é o tédio incerto
seco e mudo
onde intrigas insones
e heresias ledas
são fermentadas
com muita fleuma 
que por um triz
não greta
entre as calúnias
num ou noutro pormenor
acerta-se no limiar

se um corpo pressupõe
um peso
e este um jogo

qualquer sinal
independentemente dos sinais
se torna brandura

se a matéria se afasta
a luz é fatal
originária, nuclear.
acossada por nunca ter entrado nas perguntas
a constância chegou
numa palavra estrangeira
impronunciável
que ninguém aceita

é intolerável cantar alto
entre o sopro monótono das imagens
como uma montanha inacessível
e transparente
dissipo-me

a quem atribuir a culpa
do pudor e do escrúpulo
se nada há de mais arguto

animal acossado numa força
que irradia do que já não vive
vigio o jogo impassível da ordem
esta semelhança esculpida
na substância
massiva
da beleza feminina
promete a realização
de elevada
fantasia
material de pureza
se quiserem
ligeiramente desconfortável
como uma série
de acontecimentos
ligados
pela improbabilidade
e ainda assim
inflamáveis
como um génio
ingénuo
enfim
uma banalidade
o último dinossauro
a invenção do fogo
a divisão do átomo
uma paródia
hilariante
como uma ferida
a água
funda e sossegada

19 de junho de 2016

nunca senti nada pelos manicómios senão um grande conforto, por serem lugares onde podemos dormir o dia inteiro.