13 de janeiro de 2016

1.

 SUNA NO ONNA [A mulher da areia], Kōbō Abe (1964).


2.

Os aborígenes de ambos os sexos desenham na areia quando falam ou argumentam. Mas não da mesma maneira. Os homens parecem ocasionalmente colocar uma transparência de retroprojector na areia, para ilustrar um determinado ponto da apresentação. Os homens usam a imagem como um armazém de conhecimentos, que também está disponível noutras formas. A imagem pode ser desdobrada verbalmente e as palavras podem depois ser de novo enredadas numa imagem.
As mulheres, por outro lado, desenham um fluxo de imagens a que Munn chama «estenografia contínua». As mulheres Warlpiri fizeram da narrativa associada a estas imagens uma arte própria: djugurba, o conto da areia.
O conto da areia consiste num murmúrio rítmico de palavras acompanhado de gestos que explicam qual é a essência do conto: uma espécie de coreografia manual na areia. São os movimentos da mão quando esta molda as imagens que representam o enredo real do conto. É a própria terra que «tem» o conto, a mão só o realiza na areia, antes de a terra o retomar de novo.
«E viveram felizes para sempre.» É assim que os nossos contos costumam terminar. Mas os contos da areia do povo Warlipiri terminam com todos a desaparecer na areia. A narradora desenha um círculo e deixa que cada figura do conto entre nele e desapareça no solo. As palavras proferidas no momento do desaparecimento são sempre as mesmas: lawa-djari-dja-lgu — «e assim se tornaram nada». 
A maioria das mulheres Warlpiri tem todo um repertório destes contos que representam com mímica, voz, palavras, gestos e sinais na areia. Qualquer menina de oito ou nove anos pode inventar um conto da areia e representá-lo. Pode contá-lo a outras meninas e meninos mais novos. Um rapaz mais velho, por outro lado, não ouve os contos da areia, porque pertencem à esfera feminina.
Nos contos da areia, são comuns os vestígios de animais e de seres humanos. Os rastos são feitos com as mãos, em posições diferentes, obtendo traços de aves, animais e seres humanos. Fazer estes traços é uma brincadeira que os adultos praticam muitas vezes com as crianças. A arte de rastrear as presas era, obviamente, de grande importância para os meios de subsistência tradicionais dos povos do deserto. Mas ainda mais importantes são as pegadas e outros vestígios que o corpo deixa no terreno como intersecções entre o homem e a terra. 

Sven Lindqvist, Terra Nullius.

11 de janeiro de 2016

In the villa of Ormen, in the villa of Ormen
Stands a solitary candle, ah-ah, ah-ah
In the centre of it all, in the centre of it all
Your eyes
On the day of execution, on the day of execution
Only women kneel and smile, ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, at the centre of it all
Your eyes, your eyes
Ah-ah-ah
Ah-ah-ah
In the villa of Ormen, in the villa of Ormen
Stands a solitary candle, ah-ah, ah-ah
In the centre of it all, in the centre of it all
Your eyes
Ah-ah-ah
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
How many times does an angel fall?
How many people lie instead of talking tall?
He trod on sacred ground, he cried loud into the crowd
(I’m a blackstar, I’m a blackstar, I’m not a gangster)
I can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a marvel star)
I’m the great I am (I’m a blackstar)
I’m a blackstar, way up, oh honey, I’ve got game
I see right so white, so open-heart it’s pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a star star, I’m a blackstar)
I can’t answer why (I’m not a gangster)
But I can tell you how (I’m not a flam star)
We were born upside-down (I’m a star star)
Born the wrong way ‘round (I’m not a white star)
(I’m a blackstar, I’m not a gangster
I’m a blackstar, I’m a blackstar
I’m not a pornstar, I’m not a wandering star
I’m a blackstar, I’m a blackstar)
In the villa of Ormen stands a solitary candle
Ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, your eyes
On the day of execution, only women kneel and smile
Ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, your eyes, your eyes
Ah-ah-ah

8 de janeiro de 2016

— Consideras o amor a mais forte de todas as paixões? — perguntou ele.
— Conheces outra mais forte?
— Sim, o interesse.

Thomas Mann, Doutor Fausto.

7 de janeiro de 2016

1.

é evidente que estou numa situação particular. uma muralha enorme transformou a minha memória e o meu afeto. nunca serei senão uma criança, cuja linguagem, pobre e desarticulada, e cujos gestos, desajeitados e ineptos, provocam graça. com grande espanto, o meu corpo foi despejado no mundo. espanto:

1. Impressão forte causada por coisa inesperada e repentina. = ASSOMBRO, CONSTERNAÇÃO, MARAVILHA, PASMO, SURPRESA
2. Sensação de grande medo. = SUSTO

"espanto", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/espanto [consultado em 07-01-2016].

não posso desembaraçar-me de certos gestos antiquados mas olhei para os olhos de alguns seres semelhantes a mim, que de volta olharam para mim. a zombaria esvazia-me mas isso deixa-me contente. o lugar onde caí é seco, frio, vasto, e o meu olhar é tão frágil que fatalmente me deparei com os nomes das coisas. e os nomes deixaram-me em silêncio. catapultada na minha própria intimidade, onde admiro as mais belas nuvens e montanhas e também as mais vis, esfomeadas, bestas, deixei de sonhar. mas a alegria deixa sequelas inultrapassáveis: ela é o trauma. acredito que nem mesmo a morte provoca danos tão insuportáveis, pois o tempo cuida da memória. a alegria porém não é coisa que fique guardada na memória, pois é da natureza da deflagração e da voragem, e estas são inextinguíveis, ou seja, não têm princípio nem têm fim. é essa imensidão que protejo.

6 de janeiro de 2016


2.

Em alguma sexta-feira de 2015, eu acordei mais cedo do que o costume para terminar de preparar a aula. Pra variar, estava atrasado - com filho pequeno, a gente tá sempre atrasado, mais do que o sempre-estar-atrasado normal. Tomei café, sentei na mesa e assim que comecei a trabalhar, o C. acordou no quarto do lado. Por um curto instante, pensei em deixar que a F. acordasse e tomasse conta dele, mas logo tomei vergonha na cara e percebi que não era questão de "tomar conta". Peguei ele no colo, e o levei ao trocador para trocar sua fralda. A sua expressão de felicidade por estar comigo, por alguém querido estar compartilhando sua presença, era imensa e contrastava com meu mau humor matinal de costume. Ao ver que essa expressão transbordava por todo o seu corpo, ou melhor, ao senti-la, fui contaminado por ela. Diante dela, eu só conseguia pensar e sussurrar (para não acordar a F., deixando-a descansar ao menos cinco minutos a mais) "que alegria!, que alegria!", ao que ele respondia gesticulando jubilosamente os braços e as pernas, de corpo inteiro, com um sorriso do tamanho do mundo, que continha o mundo inteiro, que até mesmo o mundo era incapaz de conter. Naquele momento, senti e compreendi o que era o êxtase, e naquele momento C. me ensinou que a vida não é o conjunto de funções que resiste à morte, mas a disseminação da alegria (a única prova dos nove), um afeto que nunca se limita a si, que emana do sujeito e o faz sair de si, o afeto que expressa o amar, verbo transitivo, pois nos coloca sempre em trânsito, movimento em direção ao mundo que é o contrário da morte com sua fixidez, que é capaz inclusive de sobre-viver à morte: um vagamundear, outro nome para a vida.

Alexandre Nodari, publicado no facebook a 7 de janeiro de 2016, 22:15.

6 de janeiro de 2016

12 de novembro, 2013

tarde metafísica
O grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento.

Milan Kundera, A Lentidão.

5 de janeiro de 2016






















Farocki 

rimbaud

Gênes, le dimanche 17 novembre, 1878

Chers amis,

     J'arrive ce matin à Gênes, et reçois vos lettres. Un passage pour l'Egypte se paie en or, de sorte qu'il n'y a aucun bénéfice. Je pars lundi 19 à neuf heures du soir. On arrive à la fin du mois.
Quant à la façon dont je suis arrivé ici, elle a été accidentée et rafraîchie de temps en temps par la saison. Sur la ligne droite des Ardennes en Suisse, voulant rejoindre, de Remiremont, la corresp. Allemande à Wesserling, il m'a fallu passer les Vosges ; d'abord en diligence, puis à pied, aucune diligence ne pouvant plus circuler, dans cinquante centimètres de neige en moyenne et par une tourmente signalée. Mais l'exploit prévu était le passage du Gothard, qu'on ne monte plus en voiture à cette saison, et que je ne pouvais passer en voiture.
A Altdorf, à la pointe méridionale du lac des Quatre Cantons qu'on a côtoyé en vapeur, commence la route du Gothard. A Amsteg, à une quinzaine de kilomètres d'altdorf, la route commence à grimper et à tourner selon le caractère alpestre. Plus de vallées, on ne fait plus que dominer des précipices, par dessus les bornes décamétriques de la route. Avant d'arriver à Andermatt, on passe un endroit d'une horreur remarquable, dit le pont du Diable, - moins beau pourtant que la Via Mala du Splügen, que vous avez en gravure. A Göschenen, un village devenant bourg par l'affluence des ouvriers, [on voit au fond de la gorge l'ouverture du fameux tunnel, les ateliers et les cantines de l'entreprise. D'ailleurs, tout ce pays d'aspect si féroce est fort travaillé et travaillant. Si l'on ne voit pas de batteuses à vapeur dans la gorge, on entend un peu partout la scie et la pioche sur la hauteur invisible. Il va sans dire que l'industrie du pays se montre surtout en morceaux de bois. Il y a beaucoup de fouilles minières. Les aubergistes vous offrent des spécimens minéraux plus ou moins curieux, que le diable, dit-on, vient acheter au sommet des collines et va revendre en ville.
Puis commence la vraie montée, à Hospital, je crois : d'abord presque une escalade, par les traverses, puis des plateaux ou simplement la route des voitures. Car il faut bien se figurer que l'on ne peut suivre tout le temps celle-ci, qui ne monte qu'en zig-zags ou terrasses fort douces, ce qui mettrait un temps infini, quand il n'y a à pic que 4900 d'élévation, pour chaque face, et même moins de 4900, vu l'élévation du voisinage. On ne monte non plus à pic, on suit des montées habituelles, sinon frayées. Les gens non habitués au spectacle des montagnes apprennent aussi qu'une montagne peut avoir des pics, mais qu'un pic n'est pas la montagne. Le sommet du Gothard a donc plusieurs kilomètres de superficie.
La route, qui n'a guère que six mètres de largeur, est comblée tout le long à droite par une chute de neige de près de deux mètres de hauteur, qui, à chaque instant, allonge sur la route une barre d'un mètre de haut qu'il faut fendre sous une atroce tourmente de grésil. Voici ! plus une ombre dessus, dessous ni autour, quoique nous soyons entourés d'objets énormes ; plus de route, de précipices, de gorge ni de ciel : rien que du blanc à songer, à toucher, à voir, ou ne pas voir, car impossible de lever les yeux de l'embêtement blanc qu'on croit être le milieu du sentier. Impossible de lever le nez à une bise aussi carabinante, les cils et la moustache en stalactites, l'oreille déchirée, le cou gonflé. Sans l'ombre qu'on est soi-même, et sans les poteaux du télégraphe, qui suivent la route supposée, on serait aussi embarrassé qu'un pierrot dans un four.
Voici à fendre plus d'un mètre de haut, sur un kilomètre de long. On ne voit plus ses genoux de longtemps. C'est échauffant. Haletants, car en une demi heure la tourmente peut nous ensevelir sans trop d'efforts, on s'encourage par des cris, (on ne monte jamais tout seul, mais par bandes). Enfin voici une cantonnière : on y paie le bol d'eau salée 1,50. En route. Mais le vent s'enrage, la route se comble visiblement. Voici un convoi de traîneaux, un cheval tombé moitié enseveli. Mais la route se perd. De quel côté des poteaux est-ce ? (II n'y a de poteaux que d'un côté.) On dévie, on plonge jusqu'aux côtes, jusque sous les bras... Une ombre pâle derrière une tranchée : c'est l'hospice du Gothard, établissement civil et hospitalier, vilaine bâtisse de sapin et pierres ; un clocheton. A la sonnette un jeune homme louche vous reçoit ; on monte dans une salle basse et malpropre où on vous régale de droit de pain et fromage, soupe et goutte. On voit les beaux gros chiens jaunes à l'histoire connue. Bientôt arrivent à moitié morts les retardataires de la montagne. Le soir on est une trentaine, qu'on distribue, après la soupe, sur des paillasses dures et sous des couvertures insuffisantes. La nuit, on entend les hôtes exhaler en cantiques sacrés leur plaisir de voler un jour de plus les gouvernements qui subventionnent leur cahute.
Au matin, après le pain-fromage-goutte, raffermis par cette hospitalité gratuite qu'on peut prolonger aussi longtemps que la tempête le permet, on sort : ce matin, au soleil, la montagne est merveilleuse : plus de vent, toute descente, par les traverses, avec des sauts, des dégringolades kilométriques, qui vous font arriver à Airolo, l'autre côté du tunnel, où la route reprend le caractère alpestre, circulaire et engorgé, mais descendant. C'est le Tessin.
La route est en neige jusqu'à plus de trente kilomètres du Gothard. A trente K seulement, à Giornico, la vallée s'élargit un peu. Quelques berceaux de vignes et quelques bouts de prés, qu'on fume soigneusement avec des feuilles et autres détritus de sapin qui ont dû servir de litière. Sur la route défilent chèvres, bœufs et vaches gris, cochons noirs. A Bellinzona, il y a un fort marché de ces bestiaux. A Lugano, à vingt lieues du Gothard, on prend le train, et on va de l'agréable lac de Lugano à l'agréable lac de Como. Ensuite, trajet connu.

Je suis tout à vous, je vous remercie et dans une vingtaine de jours vous aurez une lettre.

Votre ami.

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud


Havia muito que estava a pensar nisto, como já estava um tanto farto, continuei com menos lógica: não estava morto até aparecerem os intrusos; na solidão é impossível estar morto. Para ressuscitar tenho que suprimir as testemunhas. Será um extermínio fácil. Não existo, elas não suspeitarão da sua destruição. Estava a pensar noutra coisa, num incrível projeto de rapto privadíssimo, como de sonho, que contava apenas a mim próprio.

Adolfo Bioy Casares, A Invenção de Morel.

3 de janeiro de 2016

No espaço azul e vago,
esvoaça subtilmente
a cálida lembrança
da tua voz.

Judith Teixeira