22 de fevereiro de 2015

Words and images run riot in my head, pursuing, flying, clashing, merging, endlessly. But beyond this tumult there is a great calm, and a great indifference, never really to be troubled by anything again.

Samuel Beckett, Malone Dies.
sentava-me agora a uma secretária com o meu computador em frente, começava a escrever sobre os meus pais e não saía de lá enquanto não tivesse terminado. comia quando me lembrasse da fome, deitava-me numa cama ou num colchão atrás da secretária para recuperar do sono, saía para caminhar quando alguma coisa me estivesse a bloquear para logo me arrepender e ter de voltar a correr para o computador, eu que odeio correr. o resultado, seria pouco ou seria muito? meia, uma página? cinco, cinquenta, quinhentas páginas? de quanto tempo precisava? de uma tarde, de um mês? um ano, dez? o que tenho para dizer sobre eles? agora sei, neste preciso momento sei, agora começava. agora a indiferença é irrisória. começava pelo fim.

21 de fevereiro de 2015

ora portanto: ando a ler ao meu sobrinho mais velho uma BD que reúne várias histórias de super heróis. hoje chegámos a uma onde aparece pela primeira vez a Mulher Maravilha. ela está num planeta qualquer cheio de gelo e aparece o Batman e o Robin. trocam umas piadas e entretanto ela diz: «bom, venham para dentro antes que gelem.», ao que o Robin diz entredentes para o Batman: «se continuares com essas roupas, vai ser difícil.» e o Batman retorque: «pensamentos puros Robin, mantém os pensamentos puros...».
neste ponto da história, ouvindo o silêncio do meu sobrinho, decidi parar e perguntei-lhe eu «a mulher maravilha é gira?», ao que o meu sobrinho respondeu «hum hum!» acompanhando a interjeição com um aceno de cabeça afirmativo. para minha surpresa, eis que continua (e aqui poderão efetivamente constatar que sim, ele sabe falar): «e aqui há outra! queres veres? (e começa a folhear as páginas, à procura de qualquer coisa no final do livro). eu já vi, está aqui. é a super girl.» decido ajudar. encontro uns desenhos de uma miúda de cabelo comprido loiro atado num rabo de cavalo, mini saia e copa 100b a voar. e pergunto: «gostas desta?» ele diz que sim. e novamente continua: «ela é que é a super menina. mesmo.» eu, que sou macaca e desconheço o que sejam os pensamentos puros de que o Batman estaria a falar, digo-lhe: «que giro, é loira como a mamã não é?». ele sorri. prometi ler mais amanhã e vim embora.

agora, alguém me diga que não estamos já neste ponto se faz favor.

17 de fevereiro de 2015

Thomas Becker, uma das sete fotografias da edição original de Nach der Natur, de 1988, de W.G. Sebald.

16 de fevereiro de 2015

a criança ri porque a mãe, que conversa com uma pessoa que encontrou na rua, ri. não pode participar na conversa, o conteúdo escapa-lhe, é-lhe estrangeiro. espanta-se sim com a repentina rutura do peso do quotidiano, cuja possibilidade, a princípio, se afigura até incompreensível. perante o frio enigma, a criança pergunta-se qual é o preço a pagar por essa alegria de contágio, de pura perda.

15 de fevereiro de 2015

no meio do caminho tinha uma pedra. nunca me esquecerei desse acontecimento na vida das minhas retinas tão fatigadas.
li agora num comentário no facebook No princípio era o verbo. E esse não nos podem tirar e pensei, quase automaticamente, ai podem podem.
já apenas dou crédito àqueles que se recolhem e protegem do mundo, aos que tomam a sua distância sobre sublevações sociais e movimentos políticos, que se rodeiam de cuidados quando usam palavras, atentos ao que nelas se constitui pelo seu verso, que nos escapa e que incomunicável finalmente nos isola. é a piada da vida.

14 de fevereiro de 2015

This bitter earth
What a fruit it bears
What good is love
That no one shares
And if my life
Is like the dust
That hides the glow of a rose
What good am I
Heaven only knows
This bitter earth
Can be so cold
Today you're young
Too soon you're old
But while a voice
Within me cries
I'm sure someone
May answer my call
And this bitter earth
May not be so bitter after all

Clyde Otis

13 de fevereiro de 2015

Remember that my life is wind. I have become the pelican of the desert, the owl of the ruins, and like a sparrow I am sitting alone on the roof.

Forough Farrokhzad, خانه سیاه است [The House is Black].

12 de fevereiro de 2015

quando eu era pequena gostava de um rapaz muito moreno que nunca falava e nunca olhava para mim e que, disseram-me recentemente, tem epilepsia. talvez ainda goste pois é a primeira vez que falo dele, e agora mesmo ainda com incerteza, embora desde essa época reveja frequentemente o seu rosto inescrutável. chamava-se Afonso. tinha o cabelo muito liso, os lábios negros. trazia uma aparência de tal forma insegura quando a cada início de ano entrava na sala, que parecia poder soçobrar em lágrimas a qualquer momento. eu tinha vontade de o resgatar a essa aflição, como de resto a qualquer outra aflição que pudesse atormentá-lo. era uma vontade que me apertava a base da garganta e me ordenava que me levantasse e lhe pegasse na mão para o conduzir até ao lugar onde se quisesse sentar obrigando os outros a meterem-se na sua vida e a olharem para outro lado. ele sentava-se no centro da sala. sentava-se, pousava os olhos na carteira diante dele e a partir dali não olhava nem falava com ninguém. eu procurava o lugar mais próximo possível dele. procurava um lugar de onde pudesse pelo menos contemplar o seu olhar posto sobre a secretária, investigar a cor dos seus olhos, a agilidade das mãos. agora acho espantoso que tivesse feito isto. que uma criança tão pequena possa fazer isto. uma única vez tentei dirigir-lhe a palavra, já não sei exatamente porquê, pretendi ajudá-lo com alguma coisa. ele teve uma reação muito violenta, como se me ralhasse, creio que chegou a levantar-me a voz, embora nem mesmo nesse momento tenha olhado para mim. nunca pude perceber a sua reação e a irredutibilidade desse enigma transformou-me. depois disso continuei a ajudá-lo, como tinha feito até aí, procurando protegê-lo da crueldade dos outros colegas sobretudo, ou tentando suavizar alguma questão de comunicação com a professora (que facilmente se irritava) quando ele era chamado ao quadro, mas em nenhuma outra ocasião voltei a fazer-me visível. no dia em que me disseram que ele tem epilepsia, esperei que alguma coisa se resolvesse em mim, mas apenas voltei a sentir a base da garganta apertar-se. vi com assombro que a improvável vontade de o levar para fora daqui se mantinha bem como a frustração por nunca ter conseguido falar com ele. chamava-se Afonso. tinha o sorriso mais lindo do mundo, bonito ao ponto de me comover. por vezes eu ia para casa repetindo o nome dele contra o meu silêncio e sorrindo sem saber porquê. não sabia porquê. havia um menino chamado Ivo que gostava de mim e que eu odiava, não porque ele fosse mau ou importuno, não era, mas porque o Afonso podia pensar que eu lhe correspondesse. mesmo depois de o Afonso me ter respondido rispidamente, e de com isso eu ter percebido que nunca iria brincar com ele no intervalo, nunca deixei de o proteger em segredo e nunca correspondi às ardentes e arrebatadas propostas do Ivo nem do Pedro nem do Gonçalo, tendo posto termo a qualquer esperança e sem o mais fino fio de dúvida. no dia em que a quarta classe acabou, toda a gente achou que eu estava a chorar por causa da separação da minha melhor amiga mas, embora eu não o tenha desmentido, não é verdade. eu chorei porque o Afonso nem sequer ficou para a festa de despedida e assim nem o meu olhar pôde despedir-se dele.