31 de janeiro de 2015

Nunca conseguirás nada se te abandonares a ti mesmo, mas pensa em tudo o que te faltará se ficares dentro do teu próprio círculo. A esta admoestação respondo apenas: também eu preferiria receber os golpes dentro do meu círculo a infligi‑los fora dele, mas onde diabo está este círculo? Durante muito tempo vi‑o sobre a terra, como se desenhado com cal, mas agora apenas paira à minha volta, não, não paira sequer.

Kafka, Diários de Viagem.
Things turn into dust continuously.

Jonas Mekas

30 de janeiro de 2015

Tal como um rio que se perde em subterrâneos para depois aparecer à superfície, os homens assistem às metamorfoses do seu espírito, que muda de qualidade mas mantém a sua medida. O seu jogo de permutas tem um valor pessoal e particular inconfundível, que atravessa a obscuridade do tempo, a intenção do intelecto e a obsessão do ícone (mesmo que vazio), resultando invariavelmente numa semântica nova. A densidade de um fenómeno é relativa. O que há de mais peremptório num fenómeno é esta região imaterial da imaginação e da memória, cuja rutura nos conduz ao cerne de todo o movimento. E o que se encontra no cerne do movimento? Constância. Toda a agitação da vida humana está diluída na abertura inumerável. Os melancólicos, os serenos, os violentos, os dramáticos, os frágeis, corpos imponderavelmente enlaçados cujos liames permanecem secretos e incorruptíveis.

29 de janeiro de 2015

há muito que a palavra esperança deixou de fazer sentido. o mundo tal como o vejo é irredimível. feito de tempo, feito de espaço, feito de uma fugacidade que no limite o torna imaterial. o mundo é nada e nós somos disso um exemplo.

25 de janeiro de 2015

23 de janeiro de 2015

doem-me os lugares que o teu nome tornou férteis.
às vezes conto uma história só para poder dizer o nome de uma personagem. a história é relativa. o que acontece, tanto acontece depois de uma esquina como acontece do lado de lá de uma porta e dentro de um vagão de comboio. o que existe é esse nome, com o seu tempo, o seu lugar, a sua pontuação e o seu corpo próprios.

22 de janeiro de 2015

uma manifestação de massas, seja a causa política, ideológica ou social, devia ser um acontecimento extraordinário, raro, violento. pensar numa manifestação como instrumento de cidadania é uma contradição nos termos.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas ou corças do campo,
que não acordeis nem desperteis a amada,
antes que ela queira!

Cântico dos Cânticos

19 de janeiro de 2015

a primeira coisa em que repara quando entra é num ramo de flores secas ao fundo da sala. estão dentro de um jarro de vidro opalino azul, em cima do parapeito da janela maior, e há pétalas perto da base e no chão. apesar de secas, mantêm uma cor viva, sobretudo nas extremidades. conversam animados quando entram, estão a despir os casacos, compridos, molhados, a pousar os guarda-chuvas, as malas, os livros. ela é morena, o cabelo fino está apanhado na nuca, usa-o quase sempre assim. tem um pequeno gancho de lado, um gancho invisível que usa como adorno, como outra mulher teria usado um laço vermelho ou um gancho de marfim. estou a vê-la, poderia desenhar cada detalhe do seu rosto, do seu corpo, mas não quero descrevê-la para além disto. tem os lábios rosa escuro. está a falar. a ele não o vejo. sei que está ali, atrás dela. também despiu o casaco, segura-o ainda no braço esquerdo, que está dobrado. está de costas, não a viu olhar para o jarro, embora ela o temesse e por isso olhasse furtivamente para ele, para perceber se tinha sido vista a ver. está curvado para o chão a arrumar qualquer coisa parece-me. ela vê o jarro e baixa o olhar como se, sem intenção, tivesse visto uma cena muito íntima, como se qualquer coisa muito íntima tivesse sido exposta ao seu olhar. não tem a certeza que ele não tenha reparado. baixa os olhos, não consegue voltar a olhar para elas quando entram na sala, está tensa. coloca-se de lado, os braços cruzados, a atenção atraída para as flores secas. agora começo a vê-lo. ela pensa naquilo e quase não o ouve. pensa em porque teria ido ali hoje. pensa que nada há de mais natural do que ter encontrado alguma coisa da intimidade da pessoa que habita aquele apartamento. ¿que outro sítio para a intimidade estar exposta? ¿porque sente pudor perante um ramo de flores secas e não perante a meia suja caída junto do pé do sofá, essa sem qualquer relevância para ela? ¿o que poderia haver de íntimo — estranha escolha de palavra — num ramo de flores a secar, um ramo porventura esquecido à beira de uma janela? melhor: ¿o que é que na intimidade lhe provocava pudor? ali estava, entre as coisas dele, transtornada a pensar nas flores e a olhar para ele, que fazia mil coisas enquanto conversavam. ainda não se tinham sequer sentado. ele falará do ramo de flores. mais tarde, ao jantar. é um homem bastante alto, pouco mais novo do que ela. tem uma voz surpreendentemente grave. quando sorri olha sempre para ela. de resto quase nunca. fala muito, faz coisas enquanto fala, muitas delas coisas que nunca acabam e não têm significado, é falsamente irrequieto. depois do jantar, apagará a luz da sala, dirigir-se-á a ela na penumbra.