6 de outubro de 2014

Lembro-me de me arrebatar a tradução da palavra ILUSIÓN no filme La Mala Educación, do Almodovar.
Para onde fugir? Tu enches o mundo. Não posso fugir senão em ti.

Marguerite Yourcenar, Fogos.
Há sempre uma outra história dentro de uma história. É o caráter do que está separado. Defender a solidão em que se está parece ser a única possibilidade de resgatar univocidade ao que nasceu equívoco. Procuro a agulha perdida entre a palha no chão. Temos de ocupar o tempo com alguma coisa. Quando me sinto demasiado perdida procuro recordar que não é tão importante o que me aconteceu como o que vou fazer com o que me aconteceu. Procuro recordar que a palavra mais importante dessa sentença é a palavra fazer. E então a verdade perde substância. Porque não existe. Atravesso a distância entre o perto e o longe deixando para trás a colisão abrupta das minhas ilusões. O destino dos espetros é serem espetros. Eu, estou aqui.

5 de outubro de 2014

Kafka acaba de por uma pantera jovem na jaula no lugar do Artista da Fome.
Se todas as outras razões não bastassem, o último parágrafo deste conto bastaria para lhe consagrar a mais solitária genialidade.

3 de outubro de 2014

Percebo agora que todo o processo de metamorfose consiste, talvez inteiramente, em decadência e deterioração. Não tenho linguagem que me permita descrever o que acontece no núcleo desta transformação. Parece-me idêntico dizer que se trata de um processo terrivelmente violento ou que se assemelha à graciosidade da flor que abre. Toda a regeneração é uma metonímia da morte. O extraordinário está em que a medida da transformação excede a nossa resiliência (e portanto a nossa expetativa) face aos acontecimentos: a transformação tem a medida da evidência. E o princípio da evidência é aniquilar. O futuro oferece-se sempre com opulência mas no absurdo espetro das suas possibilidades, qualquer movimento em direção a ele parece ridículo. A intensidade erótica da metamorfose desaparece, deixando subitamente no seu lugar um ideal romântico de liberdade. Face à ruína, porém, os ideais não portam mistério. Perante a opacidade de um futuro intrincado, a defraudada armadilha do prazer colapsa e nós somos o seu colapso. Se eu já não amo, que paisagem é esta?, pergunta-se, e a imaginação conduz inexoravelmente ao retiro, que apenas mostra a escuridão de onde viemos e um destino abrupto.
Sou austeramente selvagem. Vou perseverando numa atmosfera composta de distâncias sem enigma. Entro como um vulto em casas prontas para serem deixadas porque há no abandono qualquer coisa infinitamente apaziguadora. Pressinto nelas o eco de lembranças que não tenho. Sou apaixonada por essas casas vazias, que flutuam abertas para lá da memória. Elas são o exótico altar da minha infância pois a infância é uma fórmula imaterial, uma fonte geométrica enterrada na revelação genuína. Sou uma mulher e sei que sou essa mulher mais do que sei quem sou. É uma questão de sobrevivência: a linguagem da perdição tem implicações que estão sempre a ser negociadas. Às vezes penso que se estava melhor no cativeiro mas a fatalidade impregna-o de tal maneira que me repugna regressar. Aporto a um voluptuoso silêncio. Não posso afirmar que seja límpido. A minha satisfação está em vê-lo adensar-se e expandir-se. Imperfeitamente.

1 de outubro de 2014

na boca silenciosa das mães nasce o sono e o medo de não voltar a acordar. se os filhos falam durante a noite é porque toda a noite as chamam. querem que a mãe lhes explique porque é que estão a cair. querem saber porque é que ela os deixou cair e porque é que o amor não chega para amparar a queda. portanto o amor passa a confundir-se com a desilusão, que nunca é magna o suficiente para alvitrar o desencantamento. então as mães transformam-se na pura noite onde os filhos continuam a chamar. e os filhos regressam para ficar universalmente imóveis à boca delas, a escutar.
ao meio-dia
uma vez
o sino toca
Não entendo o desejo que muita gente tem de melhorar o mundo. Absolutamente nada neste mundo salva a vida, muito menos nada que tenha origem no esforço e na vontade humanos. Navegamos num oceano lúdico cujos movimentos e resultado não podemos prever nem controlar. Mas enfim, até os filmes do Ford acabam bem. La vie est une vaste rigolade, e daqui não se passa.