16 de junho de 2014

Água a correr, um vespão, uma lagartixa, rãs, outros insetos, pássaros, coelhos, galinhas, portas que se abrem e se fecham, as maçanetas dessas portas que rodam, passos e o restolhar das batinas, orações, cânticos, fogo a crepitar nas lareiras e na cozinha, pratos, talheres, vento, instrumentos agrícolas, a terra a abrir-se pelo machado, folhas que caem: o silêncio neste mosteiro correspondia apenas à ausência da fala, uma espécie de conformidade ao tempo, esse perversamente auditivo.
Depois da minha visita peço um copo com água. O segurança, simpático e familiar, faz-me descer à cozinha dos funcionários; fico contente por poder conhecer também estes espaços, ocultos, destinados ao trabalho de hoje. Apesar de estar uma garrafa de água do Luso em cima do balcão, abre a torneira para encher o copo que me vai oferecer, o que me parece uma indelicadeza enquanto reparo ao mesmo tempo que a água que cai no copo tem uma limpidez estranha, uma transparência quase perturbante. E sabe bem. À medida que a bebo, recordo qualquer coisa que não consigo distinguir, como se a cada golo recuasse com assombro de regresso a um gesto comum, só meu. Estou quase no fim quando o segurança revela que é água da fonte, que toda a água que abastece o mosteiro provém dela e que os funcionários - diz risonho e satisfeito - enchem garrafões de cinco litros para levar para casa. A água da fonte é a água do poço da casa dos meus bisavós, e não sei se o tempo que vivi morrerá comigo ou se é absoluto como o vejo, mas sou ainda essa criança, diante do mesmo poço e da mesma água. O táxi chega, nunca vi um táxi assim. É um brilhante Mercedes negro, sem placa nem número, sobe a ladeira a grande velocidade e para à frente da entrada principal do mosteiro. O taxista sai, abre-me a porta e chega o banco ao lado do condutor para a frente, para que eu fique com mais espaço atrás. Despeço-me do segurança com um aperto de mão e quando a porta do táxi se fecha sou fulminada por uma melancolia cortante, que me envolve como uma serpente mata. Procuro aflita a razão mas não consigo evitar comover-me. Sei apenas que me despeço da beleza e que o silêncio que subitamente se abate dentro do carro me submerge.
The idea that the dead might not be utterly gone has an irresistible magnetism. (...). After a loss, you have to learn to believe the dead one is dead. It doesn’t come naturally.

Megan O'Rourke

15 de junho de 2014

Por vezes, mesmo quando escrevo no meu diário, hesito entre manter segredos e escrever sem explicar nada. A incerteza de chegar a tempo de destruir tudo antes que alguém conheça a miséria da minha infância que perdura, domina-me. Sou como os tementes a deus, desconfio da disciplina como do diabo que macula o que é puro e ao mesmo tempo estou presa a ela, como a uma oração.
Coisas que gostaria de corrigir:

À pergunta «Mas como é que isso se faz?» gostaria de ter respondido, procurando o olhar da única pessoa que pareceu entender aquilo que a motivou, «Queres responder T.?».

Em vez de um impropério, assumir o nada.

Ter escrito mais.

Em vez de silêncio, a gargalhada que abafei.

Que peremptória, lúcida, sagaz, não desejasse salvação, e fosse modesta a esperança que inesperadamente faz vibrar a morte.

13 de junho de 2014

Foi a escrita que me revelou os homens e nada mais.
Corpos com devastações assombrosas
E um sorriso delicado a cobrir as extremidades
Embora com algumas, premeditadas, falhas
Através das quais se mostram 
Fortalecidos por silêncios implacáveis.
Foi-lhes destinada a mais ingénua malícia
De tal modo que quase sangra
Por gozar de uma atenção vegetal,
Divina.
As suas vozes tremem mas quem ouve o seu tremor?
¿Para onde vão estes fogos
Onde o tempo sucumbiu
E continua a sucumbir
Para sempre.
Toda a carne é muito mansa,
Como as torturas da memória e da certeza.
O grito espantoso, infatigável,
Possui a ociosa luminosidade das vagas
Repelindo obstinadamente o vácuo
E intoleravelmente a própria praia.

12 de junho de 2014

Vou ter de achar uma linguagem nova.

Etty Hillesum, Diário 1941-43.

9 de junho de 2014

Como os habitantes da cidade que Chihiro visita, perdi a memória do meu nome e não posso regressar àquilo que me pertence. Há no meu corpo um tremor ligeiro, assim as folhas de uma árvore cuja imobilidade é permanentemente perturbada por elementos exteriores: o tabaco, o jejum.
A loucura espreita, insidiosa e leve. O sol que brilhe. O mar que receba os rios. Viverei como as moscas, que no seu movimento descrevem o padrão insignificante do silêncio.

8 de junho de 2014

Os homens têm casas, as mulheres têm habitats.
Um habitat é, por definição, o que está para além das imagens.

3 de junho de 2014

Será certamente pueril da minha parte mas nunca até ontem me tinha apercebido que nada me revolta tanto quanto a morte. Parece uma constatação evidente, por ser a única coisa em relação à qual somos verdadeiramente impotentes, mas nunca tinha pensado nisso de forma tão inequívoca como ontem perante um caixão, a família do morto, e um padre que falava de felicidade e de paraíso a apontar com os dois dedos indicadores para o céu. Talvez porque o morto não me pertencesse tivesse sido possível pensar. Não me lembro de alguma vez ter falado com alguém sobre fé nem sobre a ausência dela, a minha. Não creio que se possa falar disso e portanto não percebo como se podem fazer palestras sobre isso. No fundo não acredito que alguma palavra tenha o poder de evangelizar. Muito menos quando morre alguém que amamos. Nesses momentos devia respeitar-se o silêncio que fica.

1 de junho de 2014

Desço a colina ao encontro dos braços de sol - soberanos, maciços - desta manhã, animada pelas roupas leves que vesti, pelo vento fresco que toca a superfície da pele do pescoço e das pernas e pelo rumor dos passos e da respiração das pessoas a entrar e a sair do comboio à beira rio. Quando entro no jardim -  circular, que outra forma mais bela para um jardim? -, um cheiro atordoa-me ao ponto de me fazer parar, como um acidente.
«De onde vem de onde vem?» penso num brado abafado, enquanto percorro com dificuldade um obscuro túnel temporal cheio de lapsos e desvios insidiosos. E a dificuldade é imensa. Essa luta frágil, oca, frívola, propagava a leviandade que atrás me tinha trazido alegria. Não sabia onde estava e não podia caminhar.
Encontrei o cheiro não sei quanto tempo depois e quase nenhuma imagem. Um som abafado de crianças e de água e outro cheiro, a cloro, razão da dificuldade em reunir-me à memória do perfume deste jasmim, pois estava misturado. Sobre a ponte, que atravessava todos os dias a caminho da piscina, um tapete vermelho com bolas salientes onde me demorava a passar, os peixes dentro da água verde e os chorões debruçados sobre o rio. É sempre a mesma vertigem e sempre o mesmo inconsolado regresso a casa.