21 de julho de 2013

A escola primária onde eu andei tinha um recreio enorme, cheio de labirintos, jogos, locais proibidos, locais perigosos, zonas vazias, sombra e sol, bancos compridos onde nos podíamos sentar todos juntos e bancos isolados que ninguém abordava quando estavam ocupados, canteiros e árvores, areia e pedras e até uma zona de fuga, que quase ninguém conhecia, e que dava acesso aos campos de cultivo por detrás da escola e através deles (para quem conhecesse o caminho), acesso à cidade.
Não me lembro quanto tempo durava o intervalo maior, mas pareciam ser horas, de resto, insuficientes. A campainha tocava e nós voltámos ao ponto exato onde a brincadeira tinha sido deixada no intervalo anterior. Mas para além do rigor, o que havia era sobretudo um envolvimento que nos deixava absolutamente absorvidos pelo que na brincadeira era ocasionado. Éramos atentos. Crescíamos rapidamente, e todos os planos, todas as percepções eram desenterradas aí.
Um dia, não sei como nem porquê, algo mudou. Entre dois intervalos, era como se alguém tivesse decidido alguma coisa sem me avisar: os meninos começaram a perseguir as meninas, pedindo-lhes que lhes mostrassem as cuecas. De repente criaram-se dois grupos e as meninas passaram a ter de fugir dos rapazes, que nos perseguiam e, como máquinas programadas para fazer apenas uma coisa, tentavam convencer-nos a mostrar-lhes as cuecas. Quando jogávamos speedball ou vólei ou à macaca, lá estavam eles, preparados para nos tocar subtil e inapropriadamente.
De início estávamos apenas surpreendidas pela reviravolta e achámos que duraria pouco. Mas passado uns dias a situação começou a mudar. A insistência tornou-se invasiva, repetitiva e chata. E fundamentalmente, já ninguém brincava. Então decidi agir.
Entre o fim de um intervalo e a hora de aulas que se seguiu, elaborei o meu plano. Antes de entrarmos cada um na sua sala, reuni os rapazes e pedi-lhes à pressa que no intervalo seguinte se encontrassem comigo à porta das casas de banho atrás do pavilhão desportivo. No intervalo corri para o local na expectativa da minha convocatória ter funcionado ou não, mas lá estavam eles. Expliquei-lhes então que tinha uma proposta a fazer-lhes, que era a seguinte: uma das casas de banho (a das meninas justamente) tinha um guardanapo no lugar da fechadura, que tinha caído, e nunca tinha sido arranjada. Eu iria entrar na casa de banho, ficar de pé, subir a saia e tirar o guardanapo para que cada menino pudesse espreitar pelo buraco da fechadura e ver as minhas cuecas. Em troca (não há almoços grátis), eles nunca mais podiam chatear as meninas.
Eu tinha umas cuecas do rato Mickey. E o resto é história.

20 de julho de 2013

Num certo ponto de maturidade, a pele do pêssego não se remove à faca.

17 de julho de 2013

Vivi com uma reprodução de um quadro de Rembrandt (The Mill, 1645-1648) até aos 18 anos. Lembro-me vagamente do dia em que chegou. Primeiro era apenas um objecto entre outros objectos acabados de adquirir. Só que este objecto levantou voo até à parede. E tinha coisas lá dentro. A minha mãe não gostava e disseram-me que o meu pai é que tinha insistido para o trazer. Lembro-me de achar que isso é que era o amor.
Isto - o quadro - intrigava-me. Não percebia bem o que era. Não sabia bem o que pensar dele. Um dia comecei-me a sentar à frente dele, na parede oposta, no chão, e ficava a olhar. Fazia isto dia após dia. Comecei a achar que o quadro precisava que olhassem para ele. Que se eu não olhasse para ele, ele não existia. Que para ele começar a existir, eu tinha de lhe dedicar o meu tempo e a minha atenção.
Às vezes ficava só a olhar para uma coisa, por exemplo, para a mulher que leva a criança pela mão ou para o barco que sai ou que chega ou para o moinho ou para o reflexo das árvores na água ou para a água ou para a ladeira ou para o buraco ao lado da ladeira (e ali começará uma ponte?) ou para a luz ou para a água, etc. Sei exactamente para onde olhei durante mais tempo, que foi para aquele céu a aparecer negro. Durante muito tempo esperei que acontecessem coisas maravilhosas: que aquilo tudo ganhasse vida e de repente chovesse, que as pessoas fugissem para casa a abrigar-se, que a copa das árvores mexesse violentamente com o vento, cada uma para cada lado ao mesmo tempo, que ficasse tudo enlameado, o rio subisse devagarinho e por fim o céu ficasse claro, limpo, radioso. Depois as pessoas voltariam, a falar umas com as outras e finalmente o moinho moeria. Enquanto crescia, isto foi assim.
Mais tarde, já depois da desilusão das coisas maravilhosas* nunca acontecerem, percebi que tinham todas acontecido. E quando vi um Van Gogh ao vivo pela primeira vez lembrei-me do meu quadro. Só que era como se fosse eu o meu quadro e ele me estivesse a ver a mim. Mas isso já são outros tantos.

*(E só muito mais tarde, percebi que todas as coisas que eu achava maravilhosas, extraordinárias, mágicas, eram o quotidiano).

15 de julho de 2013

Que horizonte tão vasto.

10 de julho de 2013

Esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.

10 de junho de 2013

Acho bem que se veja o Harry Potter e o Chris de Marker logo a seguir e se veja pornografia e se coma torrão de alicante e farturas e se vá à feira do livro e se esteja todo o dia no Facebook a perder tempo e se mande os filhos para os avós e se jogue wee com os filhos e se descubra que afinal o nosso destino de sonho não é a Nova Zelândia mas sim os Vales secos de McMurdo e se perca a cabeça com uma coisa simples porque isso é que é o amor e se invente uma palavra e se fume como um parvo e se pegue no carro para fugir e se desligue a televisão e se diga palavrões ao Aníbal na televisão e se tomem banhos de imersão de 4 horas e me convidem que eu não tenho banheira. E acho mal de toda a gente que disser mal.
Em frente à estação de Santo Amaro de Oeiras, encontro o café «Carioca's». As duas mesas da esplanada estão ocupadas respectivamente por duas mulheres a fazer manicure uma à outra (o cheiro do verniz chega à estrada) e por um grupo de mulheres que descansam as pernas em cima das pernas umas das outras. Entro e o deslumbre completa-se: em todas as prateleiras só há copos de cerveja e cerveja. Salva-se uma prateleira dentro da vitrina que tem bolo de frango, bolo de carne, bolo de galinha e bolo de queijo. A prateleira abaixo dessa tem copos, muitos copos e canecas, no frio claro, como é que ninguém tinha pensado nisso antes. As pessoas tratam-me como se eu fosse a rainha de Calcutá, não só o casal que me atende ao balcão mas também aquelas com quem me cruzo até chegar ao balcão. A música que se ouve é um chorinho sertanejo seguido de um chorinho sertanejo, se é que eu sei o que é um chorinho sertanejo mas na parede há um quadro com a letra da música da Adriana Calcanhoto. Na estação não se ouve uma mosca.

24 de maio de 2013

Encontro no Facebook uma fotografia que é para mim uma representação do horror, como algumas que conhecemos do Holocausto, de outras guerras e genocídios e de micro acontecimentos que se tornaram macro imagens através da comunicação social e da internet. Trata-se de uma imagem que chocou o mundo há alguns anos, quando os timorenses lutavam pela sua independência. Eu estava em França, e portanto afastada das lutas solidárias que se desenvolveram em Portugal, até à libertação. Procurava notícias nos jornais como quem procura água no deserto. Vi-a numa revista técnica de fotografia, fazia parte de uma reportagem de páginas centrais. Penso que nessa noite não consegui dormir ou não consegui dormir bem. Com a revista na mão sem o intuito de a comprar, li o pequeno texto que pairava ao lado da imagem e levei-a na garganta tentando acreditar. Uma pessoa trincava uma perna humana na parte da tíbia, segurando o pé acima da cabeça. O pequeno texto identificava a perna como tendo pertencido a um timorense e a pessoa que a trincava como pertencente às milícias armadas indonésias. Os guerreiros desciam às aldeias vindos da montanha armados com catanas e depois da matança, guardavam partes de corpos como amuleto ou como troféu. O contexto sendo inimaginável, para mim tratava-se de uma imagem transformadora. O possível tornou-se nesse dia, e nessa noite, uma escolha. Volto a vê-la hoje, catorze anos depois, numa página no Facebook como capa de um CD. Há qualquer coisa de puro (esse nome só como dizia a Duras) no facto de estar a envelhecer.

25 de abril de 2013

Acho bem que se dance muito no dia 25. E que se vá à praia. Que se passeie nos jardins e se convide a pessoa que desde a Primavera passada se queria convidar. Que se leia a tarde inteira com o telemóvel desligado. Que se almoce com a família. Que se passe o dia entre filmes e sesta. Que se vá ao cinema. Que se vá ao teatro. Que se saia com uns amigos para comer caracóis e beber jolas. Que se faça meditação a tarde inteira. Que se penteie os gatos e se mime os gatos e se brinque com os gatos. Que se passeiem os cães à beira-rio. Que se passeiem os cágados. Que se desenhe, que se escreva, que se oiça música, que se compre música que se faça música. Que alguém me ofereça um cartaz destes. Acho bem que se faça amor da madrugada à noite do dia 25. E acho mal de toda a gente que disser mal.

23 de abril de 2013

Oiço muitas vezes falar da extraordinária capacidade dos bichos de compreenderem a linguagem humana. Dez, cem, mil palavras, uma palavra que seja, parece sempre surpreendente. Nunca oiço falar de como é extraordinário uma pessoa perceber o que o miar de um gato significa.