28 de março de 2018

as traseiras de minha casa tiveram durante anos um cenário de ruína, a de uma casa tão antiga que a pequena retrete ainda era no exterior. há cerca de dois anos, contudo, a casa sofreu obras de reabilitação consideráveis e transformou-se numa casa moderna com três pisos, um pátio, um anexo e uma larga varanda. não achei muita piada. ter vizinhos com um quarto exatamente à altura da minha casa, significava perder a minha tão protegida privacidade, significava ter a vista sobre o rio corrompida, ouvir vozes, música e ruídos humanos de toda a espécie, ser enfim forçada à convivência, ainda que a mínima de um simples cumprimento, num espaço que destinei à solidão. foi por isso que, quando hoje subitamente cheguei à janela das traseiras, a noite já caída, e vi as luzes da casa nova acesas e as portadas abertas, fiz uma descoberta. com efeito, com o tempo os vizinhos ganharam confiança e foram deixando de se preocupar em fechar as janelas. dentro desta casa, através da minha janela indiscreta, um mundo abriu-se. hoje havia uma festa. enquanto todos conversavam e bebiam lá em baixo na varanda e na sala, dentro do quarto, no piso de cima, uma paisagem secreta, ao mesmo tempo grotesca e bela, se desvelava.

14 de março de 2018

Pergunto-me simplesmente, então, o que é feito da arte do salto, aquele que é preciso realizar quando nos arriscamos, quando resistimos à repetição ou nos colocamos em perigo para transformar um estado da matéria ou um estado do mundo.

Marie-José Mondzain, in Sideração.

20 de fevereiro de 2018

com a chegada desta Primavera precoce, tenho subitamente a sensação — que me devora — de ser jovem e de tudo se mostrar afável à minha passagem. contudo, à promessa de um novo início oponho uma madura desconfiança e entrego-me ao que faço. penso nos meus amigos. daqui a pouco desapareceremos um a um sem deixar rasto e ainda assim, basta para isso um pouco de saúde, hoje é a esperança que nos invade. tem um duplo deleite ser-se jovem quando se começa a envelhecer. como num romance em fogo lento, a vida tem uma excessiva, imponderável evidência.

2 de fevereiro de 2018

ela conseguia descascar uma clementina sem sujar as mãos, lavar os dentes sem deixar escorrer a pasta, nunca tomava decisões durante o período do síndrome pré-menstrual, vestisse o que vestisse, incluíndo as peças mais simples, engelhadas e largas, parecia sempre elegante e delicada. se me vestisse assim, como já havia tentado, parecia um mendigo ou uma puta e a minha organização era aleatória. era alta, tinha o nariz fino, os cabelos louros compridos e os lábios grossos cor de rosa, eu tinha começado a envelhecer. os meus cabelos, encaracolados e crespos, ficaram todos brancos e lisos, umas olheiras começavam a escavar-se, pequenos pelos apareciam em zonas inesperadas do corpo, a pele perdeu brilho e ganhei peso. curiosamente, foi nessa altura que comecei a pensar menos no tempo. ficou como que suspenso, atravessado pelo corredor da morte, um espaço vazio imprudentemente atravessado pelo sonho de alguém. a biologia escapava ao precário conceito de duração e instalava-se num tempo cíclico e no entanto contínuo, aparentemente sem fim. a vida, expectante e singular, tinha agora um valor imediato, vibrante e autónomo, mas nem por isso menos interior e completamente oposto à rapidez e à superficialidade: a falta de tempo era epidérmica e deixou de ser possível usar exemplos do passado para falar do futuro. submersa pela entropia da mentalidade obcecada em não esquecer nada para não ser surpreendida, a minha perceção da beleza não era uma alternativa a nada, mas parecia ser a única resposta para tudo. entre mim e esta bela mulher que não sujava as mãos, instalava-se uma despretensiosa vontade de, com alguma ingenuidade, redesignar uma exuberância que questionava a expressão do poder.

26 de janeiro de 2018

a primeira coisa é o sono
o sonhador aproxima-se dele
como se presidisse ao seu destino
e, fiel, apressa-se a entrar
naquele que é sempre demasiado escasso
até regressar ao princípio.

todas as noites
a terra tensa e húmida
dá um sinal maciço
ao diabo que diz a verdade
e é na voragem de ternura dessa palavra
que tudo se extingue sem razão.

25 de janeiro de 2018

ainda não decidi se uma por semana se uma por mês, mas sei que tem princípio, meio e fim. como diz o Charles Dickens, "uma coisa criada ama-se mesmo antes de existir."

subscrição aqui: https://tinyletter.com/fogoslocais

FLOR AZUL, de Raul Domingues

21 de janeiro de 2018

Quando se escreve sem pensar revelar um segredo, ou seja, com sinceridade, verifica-se que se revela um segredo que não se sabia ter.

Pier Paolo Pasolini