Pergunto-me simplesmente, então, o que é feito da arte do salto, aquele que é preciso realizar quando nos arriscamos, quando resistimos à repetição ou nos colocamos em perigo para transformar um estado da matéria ou um estado do mundo.
Marie-José Mondzain, in Sideração.
14 de março de 2018
20 de fevereiro de 2018
com a chegada desta Primavera precoce, tenho subitamente a sensação — que me devora — de ser jovem e de tudo se mostrar afável à minha passagem. contudo, à promessa de um novo início oponho uma madura desconfiança e entrego-me ao que faço. penso nos meus amigos. daqui a pouco desapareceremos um a um sem deixar rasto e ainda assim, basta para isso um pouco de saúde, hoje é a esperança que nos invade. tem um duplo deleite ser-se jovem quando se começa a envelhecer. como num romance em fogo lento, a vida tem uma excessiva, imponderável evidência.
14 de fevereiro de 2018
2 de fevereiro de 2018
ela conseguia descascar uma clementina sem sujar as mãos, lavar os dentes sem deixar escorrer a pasta, nunca tomava decisões durante o período do síndrome pré-menstrual, vestisse o que vestisse, incluíndo as peças mais simples, engelhadas e largas, parecia sempre elegante e delicada. se me vestisse assim, como já havia tentado, parecia um mendigo ou uma puta e a minha organização era aleatória. era alta, tinha o nariz fino, os cabelos louros compridos e os lábios grossos cor de rosa, eu tinha começado a envelhecer. os meus cabelos, encaracolados e crespos, ficaram todos brancos e lisos, umas olheiras começavam a escavar-se, pequenos pelos apareciam em zonas inesperadas do corpo, a pele perdeu brilho e ganhei peso. curiosamente, foi nessa altura que comecei a pensar menos no tempo. ficou como que suspenso, atravessado pelo corredor da morte, um espaço vazio imprudentemente atravessado pelo sonho de alguém. a biologia escapava ao precário conceito de duração e instalava-se num tempo cíclico e no entanto contínuo, aparentemente sem fim. a vida, expectante e singular, tinha agora um valor imediato, vibrante e autónomo, mas nem por isso menos interior e completamente oposto à rapidez e à superficialidade: a falta de tempo era epidérmica e deixou de ser possível usar exemplos do passado para falar do futuro. submersa pela entropia da mentalidade obcecada em não esquecer nada para não ser surpreendida, a minha perceção da beleza não era uma alternativa a nada, mas parecia ser a única resposta para tudo. entre mim e esta bela mulher que não sujava as mãos, instalava-se uma despretensiosa vontade de, com alguma ingenuidade, redesignar uma exuberância que questionava a expressão do poder.
30 de janeiro de 2018
I soon got used to being less afraid of dangers, whether real or imaginary, and began to fear more, much more, the moment when others reacted, because I hadn’t known how to react. My girlfriends shrieked because there was a spider? I overcame my disgust and killed it. The man I loved proposed a vacation in the mountains with the obligatory rides on a chairlift? I was dripping with sweat, but I went.
Once, the cat brought in a snake and left it under my bed, and I, with a broom and dustpan, screaming, chased it out. And if someone threatens my daughters, or me, or any human being, or any harmless animal, I resist the desire to run away.
Popular opinion has it that people who react as stubbornly as I’ve trained myself to have real courage, which consists precisely in overcoming fear. But I don’t agree. We fearful-belligerents place at the top of all our fears the fear of losing self-respect. We value ourselves very highly, and in order not to have to face our own humiliation, we are capable of anything. In other words, we drive away our fears not out of altruism but out of egotism.
And so, I have to admit, I’m afraid of myself.
Once, the cat brought in a snake and left it under my bed, and I, with a broom and dustpan, screaming, chased it out. And if someone threatens my daughters, or me, or any human being, or any harmless animal, I resist the desire to run away.
Popular opinion has it that people who react as stubbornly as I’ve trained myself to have real courage, which consists precisely in overcoming fear. But I don’t agree. We fearful-belligerents place at the top of all our fears the fear of losing self-respect. We value ourselves very highly, and in order not to have to face our own humiliation, we are capable of anything. In other words, we drive away our fears not out of altruism but out of egotism.
And so, I have to admit, I’m afraid of myself.
26 de janeiro de 2018
a primeira coisa é o sono
o sonhador aproxima-se dele
como se presidisse ao seu destino
e, fiel, apressa-se a entrar
naquele que é sempre demasiado escasso
até regressar ao princípio.
todas as noites
a terra tensa e húmida
dá um sinal maciço
ao diabo que diz a verdade
e é na voragem de ternura dessa palavra
que tudo se extingue sem razão.
o sonhador aproxima-se dele
como se presidisse ao seu destino
e, fiel, apressa-se a entrar
naquele que é sempre demasiado escasso
até regressar ao princípio.
todas as noites
a terra tensa e húmida
dá um sinal maciço
ao diabo que diz a verdade
e é na voragem de ternura dessa palavra
que tudo se extingue sem razão.
25 de janeiro de 2018
ainda não decidi se uma por semana se uma por mês, mas sei que tem princípio, meio e fim. como diz o Charles Dickens, "uma coisa criada ama-se mesmo antes de existir."
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FLOR AZUL, de Raul Domingues |
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