24 de novembro de 2016
23 de novembro de 2016
nunca fui ao cemitério visitar a campa de alguém, nem no dia de finados nem noutro qualquer. visitar ossadas tornadas anónimas é um ato esvaziado de significado para mim e assim os meus mortos sobrevivem na memória que guardo deles, em pequenos gestos e expressões que por vezes irrompem ao longo de um dia, como vultos. em contrapartida, a romaria de quem visita os cemitérios fascina-me. as suas campas, jazigos e ciprestes, possuem para mim, que desconheço a razão de se cunhar a morte com uma vida além dela, e por pretenderem insistir na individuação, um mistério inabalável. na verdade, na minha perspetiva, uma vala comum faria mais sentido. sem dúvida por isso, as capelas mortuárias que se enchem de pessoas nos velórios ansiosas por saberem da vida uns dos outros, as flores frescas deixadas nas campas, as orações e as conversas à beira delas recordando o morto, os epitáfios pouco ou mais elogiosos, impressionam-me tanto quanto a mais rara das obras-primas.
22 de novembro de 2016
15 de novembro de 2016
11 de novembro de 2016
9 de novembro de 2016
7 de novembro de 2016
6 de novembro de 2016
visto anos depois, incompreensível e assustador, o desenho parecia-lhe o resultado de um espírito demente. lembrava-se de o ter feito, depois de uma sesta num fim de tarde de primavera, mas nada mais. quis acreditar que não fora ele realmente a fazer aquilo e não podia. com repulsa, quis deitá-lo fora imediatamente e no entanto hesitava. aliás, não conseguia deixar de o observar. qualquer coisa, porventura o que nele havia de obsessivo e enigmático, deflagrava aos seus olhos como algo obscuramente belo. procurou recordar-se. tinha-o encontrado por acaso entre papéis desarrumados e sabia que era o desenho do que tinha visto num sonho. sabia que o tinha feito, a carvão, mal tinha acordado. mas não se lembrava do sonho e rever os seus elementos transpostos para o papel não o ajudava a lembrar-se. e teria isso ajudado a convencê-lo de que não era louco? a evidência, parecia-lhe, estava diante dos seus olhos, e não podia negá-lo. não sabia, de facto. com fita-cola, afixou o desenho na parede. seria o único assim? a ideia alarmou-o. mais alguém poderia ter visto um desenho daquela época e até tê-lo guardado. podia estar intacto, algures. porém, como a sua inquietação era inconfessável, nunca iria descobrir. nos dias seguintes, o desenho e as suas formas não lhe saíram da cabeça. uma enorme sombra projetava-se de um monólito no centro, sobre o qual estava um espelho com um corredor e uma porta. diversos animais rodeavam a peça central, como que em movimento, e uma mão saía de um deles. apesar de desenhada toscamente, não sabia porquê, essa mão parecia-lhe real, como se pudesse tocá-lo, e era nela que mais refletia. que espécie de loucura teria produzido aquela mão para que fulgurasse no canto de uma folha de papel, olhando-o? que espécie de loucura, enfim, a via olhá-lo? havia muito que a suspeita de que encontrava doente tinha surgido e agora não podia mais recalcar essa dúvida. permanecia secreta, contudo, a doença que o corroía e que, por vezes a muito custo, conseguia ainda esconder. eram sobretudo os pequenos detalhes que mais lhe
causavam esforço. havia de chegar o dia em que deixaria de conseguir esconder-se e a doença tomaria por fim lugar. nos últimos anos tinha adquirido asco pelos espelhos e pensava agora se isso se devia a esse sonho antigo. a imagem que lhe devolviam era demasiado nítida para que pudesse suportá-la. fosse como fosse, dizia-se vários dias depois, mais do que a demência, era a beleza que se manifestava. seria louco talvez, mas entre as ranhuras do mundo ela surgia, pequena, sem valia nem propósito. e ele via.
3 de novembro de 2016
Espinosa,
segundo Alain, mestre da alegria, mostra que «não é porque me aqueço
que estou contente, mas é porque estou contente que me aqueço», isto é,
só há uma maneira de resistir ao frio, é ficar contente que ele venha
(como parece extravagante uma tal compreensão numa época em que tudo o
que ventos, marés, temperaturas nos trazem é submetido às mós dos
pequenos sistemas de finalidades).
Maria Filomena Molder, in Sobre a Alegria.
Maria Filomena Molder, in Sobre a Alegria.
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