27 de outubro de 2015

o tratamento não tinha conseguido interromper o rápido processo de morte e o moribundo, embora lúcido, já só os olhos piscava de vez em quando. no momento em que se dirigiu para o hospital, tinha decidido abandonar-me, pelo menos era essa a minha impressão enquanto o contemplava agora e percebia que a felicidade tinha uma nitidez assustadora. eram três horas da madrugada de uma noite estrelada muito fria e eu não seria capaz de evitar a catástrofe mas em vez do fim veio a salvação. não serviu de nada.

24 de outubro de 2015

Daqui até à Póvoa de Varzim a povoação mais importante de pescadores é a Lagarteira (Âncora), na segunda reentrância da costa. Deito‑me a pé pela estrada, através do lindo pinheiral do Estado, que, de cismático, me lembra António Nobre, e fico perdido de sonho no Moledo. Em 13 de Agosto de manhã há uma ligeira névoa, um nada, um bafo. São nove horas. O azul entontece. Perco a linha da paisagem, o verde‑escuro do pinheiral que vai até ao mar, e tudo isto se me afigura uma larga concha azul, formada pelo mar azul e pelo céu azul, com uma borda de areal onde alguns velhos moinhos em fila batem as asas para meu encanto. O forte da Senhora da Ínsua fica num extremo, com o monte de Santa Tecla, que saiu agora do mar a escorrer, e no outro extremo da curva, onde a amplidão do azul é infinita, a penedia a desfazer‑se em espuma… Não posso. Por mais que queira não posso arredar‑me daqui, com a cabeça estonteada. Fico. E só ao fim da tarde é que consigo chegar a Âncora, com dois jactos de azul metidos pelos olhos dentro. Logo hoje, até muito tarde, não se apaga do céu um doirado de iluminura, que se prolonga até noite velha e morre com aflição…

Raul Brandão, Os Pescadores.

22 de outubro de 2015

Eu deito fora a porcaria sentimental. Esta é a minha tarefa. Na literatura, eu sou a senhora da limpeza, a senhora com o caixote do lixo.

Elfriede Jelinek (2004).

21 de outubro de 2015

19 de outubro de 2015

há uma ave no chão
não se move mas está viva
não se vê mas tem ferida

aproximo-me e meticulosamente
quebro-lhe a asa
antes de continuar o meu caminho
o instante em que a presa é imobilizada é o único que é puro e, por isso, o caçador nunca engole a presa mal a apanha. nela, a carne amolece e abre-se, nele o ímpeto recebe a frágua e leva o rumor. os demónios são expulsos, os inimigos vencidos, não há zelo nem escrúpulo nem privilégio nem honra mas sim silêncio. depois, antes de aplicar o último golpe, quando a presa quebra, também o caçador se imobiliza. aí, e apenas aí, a caça é inalienável.

18 de outubro de 2015

passei por um casal de mendigos a foder na entrada de um prédio. estavam tapados com um saco cama, ela praticamente imóvel, parecia morta, tinha a mão de fora da coberta, suja. ele estava todo lá dentro e os movimentos eram visíveis. passei numa direção e vi isto, voltei a passar na direção oposta e ele já lá não estava. ela continuava imóvel e tapada, mas tinha mudado de posição, deitou-se de barriga para baixo. não dava para perceber se ele iria voltar, o lugar que ocupava anteriormente estava agora a descoberto, mas também nunca dá, não é?

17 de outubro de 2015

15 de outubro de 2015

para o A., que me dá bons conselhos.

"ouve", disse-me o rapaz, "silêncio". eu: "não". como se de propósito, o operário exclamou "é meu filho!". pela primeira vez tive saudades de Marrocos. o meu pai, sozinho, com os cotovelos apoiados na mesa e o queixo nas mãos. "e depois porra?", perguntei. um amigo veio buscá-lo. veio dizer-me "você tem de tirar dali o carro". percebi que o corte na mão não era profundo e mandei-o parar. "que catástrofe". "vá. silêncio.". chovia copiosamente. olhei para ela, introspetivo. ela endireitou o corpo e disse a sorrir, sem desviar os olhos do livro "alegria, alegria".