14 de janeiro de 2019

Se fazer a história e contar uma história são, na verdade, um só e mesmo gesto, então o próprio escritor encontra-se face a uma tarefa paradoxal. Vai ter que acreditar unicamente e de modo intransigente na literatura - quer dizer na perda do fogo, vai precisar de se esquecer de si-próprio na história que tece em redor das suas personagens e, contudo, nem que seja a esse preço, vai precisar de discernir no fundo do esquecimento os brilhos de luz negra que provêm do mistério perdido.

Giorgio Agamben, O fogo e a História.

31 de dezembro de 2018

Pela primeira vez desde que vivo sozinha (há mais de 20 anos), não fiz decorações de Natal em casa. Não montei a árvore nem pus o presépio cá fora, não pendurei a grinalda na porta e a rena na parede, não acendi as luzes. A perda da minha mãe trouxe-me uma liberdade sem orgulho, que gozo perplexa. Ao mesmo tempo que quero deixar cair todos os enfeites, sinto o exemplo dela a seguir cada vez com mais força. Se, por um lado, rejeito convenções, por outro, é com os outros que vejo que faz sentido estar. Tudo o que me rouba tempo para a partilha é fútil. Creio inclusivé que a minha escrita beneficiaria muito disso: não basta ler e escrever, há que dar-se ao confronto. E construir.

20 de dezembro de 2018

How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself.

Virginia Woolf, The Waves.

19 de dezembro de 2018

um repasto de reis
é servido
numa cozinha humilde.
digo-te: até
breve,
e é esta a ideia
que me assalta.
então,
apesar de saber
que não voltarei
a procurar-te,
chego com um sorriso
a casa.
desde que escrevo no tinyletter que praticamente deixei de escrever no blogue, desobedecendo às minhas próprias regras destinadas a manter, contra a vulgaridade, o fel e a mediania quotidianos, uma disciplina de escrita. escrever estas cartas implica, em princípio, saber a quem se escreve. não é porém a ideia de relação que me atrai, mas antes a ideia de permanecer quase incógnita e de assim, sem dúvida, poder abordar ou desenvolver assuntos difíceis, que exigem o meu investimento total. são afinal esses os assuntos que me apelam obstinadamente, é a eles que pertenço e não o contrário. creio que, por isso, acabarei por começar a escrever sob pseudónimo. é uma ideia que não deixa de me perseguir. na altura em que os blogues surgiram usei um, que apenas alguns amigos conheciam. depois deixei de escrever. deixei de escrever totalmente, num momento de rutura perante o que até então tinha escrito, a meu ver superficial. quando voltei a escrever, debati-me com a necessidade de publicar o que até ali escondia de todos os olhares. comecei a publicar neste blogue, que já foi anónimo e já foi privado. um amigo, que me desafiou a alimentar e a investir mais na escrita — e que entretanto, é curioso, deixou de me ler, num impulso contra um dos meus textos — insistiu comigo sobre ser preferível dar a ver, deixando as palavras seguirem o seu curso, mas sem orfandade. concordei. contudo, interessa-me desaparecer totalmente na escrita. gosto que não se saiba quem sou — e portanto que não haja qualquer possibilidade de emitir juízos sobre a minha vida, expor as minhas ligações e fazer prejuízo quanto aos meus interesses —, tanto quanto gosto de ter um espetro de leitores reduzido, que — imagino — lêem o que lhes envio sem prestar grande atenção.

6 de novembro de 2018

"Preciso de tanto tempo sem fazer nada, que fico sem tempo para trabalhar."

Pierre Reverdy

5 de novembro de 2018

No piso superior dos Armazéns do Chiado, onde estão os restaurantes e as cadeias de fast-food, passam os dias alguns sem abrigo. Sempre os mesmos, sentados nos sofás a ver televisão, a dormir ou a olhar para ontem, estão abrigados do frio e do calor e é provável que consigam por ali pelo menos uma refeição. Quando lá vou, sento-me com eles. É da sua humanidade, destroçada e implacavelmente resumida, que partilho. Com grande precisão e considerável torpor, deslizamos para a intemporalidade como fantasmas. Até Mefistófeles gostaria de se refugiar aqui, neste incompreensível, imenso, vazio.

15 de outubro de 2018

Em agosto de 1937, os fragmentos de um Kouros de mármore foram transportados em três caixas para o Museu Arqueológico Nacional de Atenas, em Paris, onde agentes da polícia gregos o receberam da parte do marchand M. Roussos, que residiu na cidade durante algum tempo. Não foi senão mais tarde que o contrabando da estátua foi confirmado, tendo saído de Anavissos, perto de Lavrion, uma cidade na parte sudeste da Ática, na Grécia, por mar, um distrito escassamente povoado cuja costa foi durante anos palco de um sistemático tráfico em antiguidades. Do grego κοῦρος, que significa jovem ou rapaz, um Kouros designa um tipo de estátua da Grécia Antiga representando um jovem do sexo masculino. De pé, nu, com longos cabelos encaracolados e com o chamado sorriso arcaico, típico da escultura grega deste período (50 a.C. a 500 a.C.), o nome tanto era associado a imagens de jovens homens nus como a um jovem adolescente imberbe, tendo ainda sido utilizado por Homero para se referir a jovens soldados. Podendo atingir três vezes a estatura humana, têm a cabeça erguida e os olhos direcionados para o ponto de vista do observador. Estas estátuas surgem em templos como oferendas votivas, ou em cemitérios, em túmulos de cidadãos importantes, embora nunca representem pessoas reais: com a rigidez da representação formal, os seus rostos não são retratos. Esculpidos em mármore, apenas os mais abastados podiam pagar a escultores por obras deste valor e assim, os Kouros tornaram-se o símbolo da riqueza e do poder da classe aristocrática grega. Provavelmente tendo sido desenterrado de um túmulo, o Kouros de Anavissos tem 1,94 de altura e possui a seguinte inscrição: Στηθι και οικτιρον: κροισο παρα σημα θανοντοσ: ον ποτ’ ενι προμαχοισ: ωλεσε θουροσ: αρησ (Detém-te e lamenta junto a este monumento pelo defunto Kroisos, que ao guerrear na vanguarda foi morto pelo violento Ares).
Em 1983, Joël-Peter Witkin, um artista nova-iorquino cujas fotografias encenadas e construídas retratam cenas macabras, muitas vezes grotescas, fotografou Lisa Lyon, uma famosa halterofilista e modelo, como o Kouros de Anavissos, completo, com um pedestal de dois níveis. Lisa Lyon é considerada uma pioneira do halterofilismo feminino. Depois de se interessar pelo kendo, a arte japonesa da esgrima, e tendo entendido que lhe faltava força na parte superior do corpo, Lyon começou a treinar com pesos e, em junho de 1979, vence aquela que foi a única competição da sua carreira, o Campeonato Mundial de Halterofilismo Feminino. Em 1980, Mapplethorpe começou a documentar o seu corpo, mas Lisa foi também modelo para Helmut Newton e Marcus Leatherdale. À data em que conhece Witkin, já apareceu em filmes, em muitas revistas, incluindo a Playboy, e em programas de televisão, promovendo o culturismo para mulheres. Assemelhando-se a uma escultura congelada na argamassa cinza de uma impressão de gelatina prateada, nesta fotografia está de pé, com os punhos fechados pendidos de cada lado e uma das pernas ligeiramente avançada e fletida para indicar um passo à frente, tal como a estátua original — para os gregos, só pensa quem caminha. Facilmente a mais intimidadora dos dois guardas, como que para intensificar a ambiguidade e evidenciar as características masculinas, ao contrário do Kouros de Anavissos o seu sexo permanece na sombra e o seu rosto volúvel deixa de pertencer a este mundo.

Joël-Peter Witkin, Lisa Lyon as the Anavyssos Kouros, 1983.

14 de outubro de 2018

a solidão que ele procurava alcançar através do sexo estava misturada com essa disponibilidade, ligeira e despreocupada, da decisão viril. um culto a um certo tráfico parecia inspirá-lo por momentos — uma subtil variante da pressão. como no ato criativo, desejava libertar-se de si próprio e do seu nó de angústias que não são compensadas por nada. depois, nos locais do vício o silêncio voltava, frondoso e sem precedentes.

11 de outubro de 2018

A meditar, justificava o seu desejo de solidão
a solidão não é mais do que a salvaguarda da escrita quando o desejo se apresenta.
A solidão é a defesa do texto.

Maria Gabriela Llansol, O livro das comunidades.

6 de outubro de 2018

podia-se pensar que a minha mãe teria escrito poesia apenas antes de casar, vir para Portugal e ter duas filhas, mas isso não é verdade. de facto, a minha mãe escreveu durante toda a vida: em pequenos cadernos e blocos de notas anotava memórias do seu dia, frases que tinha lido ou ouvido, sítios que queria visitar e até mesmo piadas. alguns dos textos mais tocantes são sobre os netos, a sua principal fonte de alegria, mas sempre me comoveu a maneira como procurou descobrir formas de encarar a vida mais positivas, mais otimistas, o que a fez anotar também preceitos de sabedorias milenares ou populares. valores como a tolerância, a generosidade, a paciência, o humor, a brincadeira, todos eles raros, eram seu apanágio. tenho o privilégio de ter lido alguns dos poemas que escreveu em adolescente, ainda em Angola. são sobre a descoberta do amor, sobre como ela mergulhou no amor: absolutamente.

In memoriam 8 de setembro de 2018.
numa cidade operária oblíqua sobre a colina, desenrolam-se vários acontecimentos interrompidos e contaminados por objetos falsos. o ambiente é insolitamente animado: miúdos e graúdos discutem febrilmente, o sol penetra nas coisas, todas as manobras são ao mesmo tempo ingénuas e sonoras, como se sonhadas. lívido, quase abjeto, o cintilar da luz mistura-se com a emanação profana de Alexandre no horizonte. o seu riso manhoso e os seus cabelos louros, os seus gestos, as suas palavras, o seu ir e vir, são insustentavelmente modernos. calculando a ânsia pura e os desafios do pudor, cada um dos habitantes da cidade é íntimo com ele, ou seja, é observado, e, sem se conterem, deixam transbordar os seus dilemas. o vazio é assim preenchido e não há nisso nada de especial.

28 de setembro de 2018

"Eu, Antonin Artaud, só quero escrever quando já não tiver mais nada para pensar. — Como alguém que comesse o ventre, os ventos do seu ventre por dentro."

Antonin Artaud, in Eu, Antonin Artaud.

24 de setembro de 2018

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
- Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
- As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
- Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

Sebastião da Gama

20 de agosto de 2018

inocente, começava sempre por espantar-se e, depois, dizia impaciente: «Já sabia». naquele tempo, o sol tinha começado a descer e, pouco a pouco, ía deixando de iluminar o interior do jardim. mas não era ainda tempo de juntar as folhas caídas, lavrar e humedecer a terra, cortar os cepos e proteger os arbustos. não era ainda tempo de espantar-se nem com a leveza nem com a densidade. os olhos, sombrios, entravam a todo o instante em repouso e por dentro deles havia nomes que podiam ser vistos, mas não ditos. a tristeza estava acordada e viva, como um ramo pousado sobre os livros sobre a mesa, mas tudo era agora benevolente como um dia de espiga e podia ser cantado noite fora sem que a criança acordasse. quando ele viu nascer essa manhã de estrelas, percebeu que a esperança era infinita como um ovo acabado de rachar: admirável vida que começa. 

14 de agosto de 2018

Dizer com claridade o que existe em segredo.

Cecília Meireles

12 de agosto de 2018

não há verão em que as estações de televisão não filmem o presidente da república e o primeiro ministro quer na praia, quer a trabalhar em alguma representação do Estado. não se lhes pode chamar notícias, tem razão o leitor em advertir-me, mas enquanto não houver estes dois importantes momentos televisivos, o coração dos portugueses não descansa, pois, a quem é que isto fica entregue se vão todos de férias? claro, também têm direito, como os outros, e vão para onde com as granas deles? ah, bem entendido, para Portugal, como os outros, assim é que é. às vezes pergunto-me se é o país, se são as televisões que, orquestrando tudo sozinhas nos seus quartéis, cumprem a mesma grelha anual elaborada há 30 ou 40 anos. mas não pode ser, pois não? o Marcelo tem de ir a Monchique espalhar beijos e abraços e o Costa tem de fazer um mise-en-scène no seu escritório da Assembleia da República. está tudo sob controlo e podemos dormir descansados.

29 de julho de 2018

os traumas da minha infância e da minha adolescência continuam a perseguir-me. continuo a sonhar com eles, a agir com a sua lembrança como pano de fundo e a escrever sobre eles. dito isto, sou péssima na ficção que não parte da realidade e exímia em ficcionar o que aconteceu, pois o que aconteceu trabalha ainda em mim. muito do que aconteceu, contudo, ou expõe terceiros ou arrisca mostrar-me como vítima. é aí que entra a ficção, limando as pontas entre os acontecimentos e diluindo, através de uma meticulosa descrição, os seus equívocos. não é fácil transpor essas barreiras e em Nanette, Hannah Gadsby fá-lo de forma eminente. para isso, no entanto, o espetáculo desconstrói e subverte tudo aquilo que pensamos sobre o modo como o humor funciona e rompe com a indefinição deixada pela injustiça inconfessada. aquilo que Gadsby faz de mais radical em Nanette é simples: deixa de ter graça. mesmo as suas piadas estão misturadas com algo de sombrio e cáustico. depois, a certo ponto, explica que quer deixar de fazer comédia (recentemente afirmou que vai continuar) porque toda a sua carreira se baseou na auto-depreciação. "Do you understand what self-deprecation means when it comes from someone who already exists in the margins?", diz. "It’s not humility. It’s humiliation. I put myself down in order to speak, in order to seek permission to speak, and I simply will not do that anymore." Gadsby analisa como a sociedade a ensinou a odiar-se a ela própria, uma mulher lésbica alvo de inúmeras piadas que nasceu num sítio onde, até 1997, a homossexualidade era crime. "I understand the world I live in and my place in it. And I don't have one.", colmata. expressando a sua ira, na segunda parte do espetáculo a comediante assume os danos que lhe foram causados e demonstra o quanto ainda a afetam. mas também assume a sua força. o riso, afirma, "is not our medicine. Stories hold our cure."

29 de junho de 2018

aquilo que me impressiona na religião cristã, é a ideia de um deus vivo. os gregos acreditavam em deuses com características antropomórficas, não só na aparência, mas também no caráter. assim, os seus deuses podiam sentir ciúmes, inveja, injustiça, medo, raiva e qualquer outro sentimento humano. as deidades dos gregos brigavam entre si, lutavam entre si e conspiravam umas contra as outras. não há falta de deuses cruéis, traiçoeiros, adúlteros, incestuosos, mentirosos, assassinos e até mesmo embriagados, para nomear apenas algumas das suas características. para além disso, também acreditavam que os deuses se podiam apaixonar pelos seres humanos e gerar filhos com eles, a quem era dado o nome de semideuses. embora imaginassem os seus deuses muito maiores em tamanho e ultrapassando os homens em beleza e força, os seus corpos eram retratados como corpos humanos e, nas suas veias, em vez de sangue, fluía icor. era possível infligir-lhes feridas dolorosas, mas na realidade os seus corpos eram incorruptíveis, pois as feridas saravam e, à exceção dos semideuses, a sua juventude era eterna. os deuses gregos comiam, bebiam, dormiam, tinham relações sexuais entre si ou com humanos, viviam como uma família, brigavam e lutavam, seduziam e violavam. podiam deslocar-se entre os humanos de forma visível ou invisível. já os romanos não se interessavam tanto quanto os gregos pela criação divina e simplesmente adoravam os seus deuses com a certeza de que isso os agradava. ao contrários dos gregos, viam-nos como soldados, como se a todo momento estivessem preparados para a guerra. e nisto aparece o deus cristão, um deus que, em todo o mistério daquilo que revela aos homens, interage com a sua criação. o termo deus vivo é utilizado pelos cristãos para marcar a diferença com os deuses pagãos adorados na Antiguidade. no Antigo Testamento, as referências a esses deuses são feitas usando palavras que em hebraico significam inúteis, vãos, pobres, ocos e sem substância. são deuses inanimados, imagens criadas pelo homem, o oposto do deus vivo que se revela. muito mais que uma energia ou força, o seu espírito, omnisciente em relação às coisas do passado, do presente e do futuro, sem princípio nem fim, mostra-se em claro desafio desses deuses que nada sabem. o que me parece decisivo é, de facto, que o deus vivo não apenas se revela na sua criação, mas participa da vida dos que acreditam nele. o que quer isso dizer? que, sendo criador, se manifesta na vida da fé como criação. o deus vivo confunde-se com a própria vida daqueles que nele crêem, manifesta-se através de um comportamento aberto à fé, ou seja, através do amor. e o que é o amor? uma relação. deus em relação connosco é o que as escrituras fizeram chegar até nós. ora, a situação afetiva vincula-nos à existência mais do que a consciência, do que o entendimento, é por ela que somos determinados. o deus que se oculta na essência das coisas é também o deus que fala através delas ao ser amoroso que o testemunha.