15 de novembro de 2017

um sono de chumbo, não sei se de morte se amoroso, cobre-me de forma pueril e embala-me. enquanto na superfície a calma tem tanto de absoluto como de terror, nada tem de limpo a minha vigília, mas sim de turvo e leitoso. embora encerre o indício preciso de uma regularidade obsessiva, este sono tem tanto de insolente como de melancólico: como a lira de Orfeu, a sua hierarquia interna dissolve sem azáfama os tormentos dos condenados e silencia a natureza.

14 de novembro de 2017

há anos atrás, escrevi na parede da minha cozinha com uma caneta de acetato: NEM DEVER, NEM CULPA, NEM NECESSIDADE. num dos almoços que fiz com amigos cá em casa, uma das convidadas sentou-se perto dessa parede. atenta e curiosa, mal se tinha sentado já me perguntava, com uma voz delicada, muito magra, os olhos mais sujos de tinta do que pintados, porquê a necessidade? porque se precisa?, retorqui, um pouco provocadora, um pouco a achar que podia ensinar alguma coisa. depois de pensar um pouco, perguntou-me se era de coisas materiais de que falávamos. respondi-lhe que acho errado fazer-se o que quer que seja por dever, por sentimento de culpa ou por necessidade. o interesse jaz sob os nossos atos de formas não visíveis, contudo, profundamente transformadoras e é preciso estar sempre a desfazer aquilo que se constrói. satisfeita com a resposta, sorriu levemente, como se tivesse sido subitamente aliviada de um peso de séculos. foi porém nesse momento que realizei que ninguém que entre na minha cozinha pergunta sobre o dever ou sobre a culpa. e não é tanto que essas palavras estejam carregadas de negatividade, mas porque é que a necessidade não está também. o que é a necessidade? pode ser caracterizada por uma falta, como é o caso da pobreza, como um ato de força maior, coisa impossível de evitar, ou pelo seu lado biológico, no caso da urina e das fezes. em todas essas determinações, esquecemo-nos no entanto da sua oposição a contingente e livre. na Metafísica, Aristóteles define como necessidade aquilo que não pode ser ou deixar de ser ou ser de outra maneira, como respirar e comer. a necessidade é aí, também, condição de alcançar o bem e de evitar o mal e ainda, o que nos é imposto contra vontade. necessários são por outrem o espaço e o tempo, categorias definidas por Kant na sua Crítica, que assim as predica como universais. ora, oposto a universal, está o particular, o indivíduo, com a sua constelação de maneiras amorais. o espaço e o tempo são relativos a este e não o contrário: ninguém está no espaço e no tempo, são o espaço e o tempo que estão em nós. a necessidade é vista como positiva, porque o esquecemos.

12 de novembro de 2017

eu era a única rapariga no grupo. íamos sempre à Praça e depois sempre ao mesmo café, num beco perto de minha casa. o café tinha duas salas, a primeira com mesas e balcão, mais pequena e escura, a segunda com jogos, fortemente iluminada. jogávamos snooker, tetris e matraquilhos, bebíamos cerveja, comíamos tremoços. as nossas bandas eram os The Cure, os Stone Roses, os Violent Femmes, os Joy Division, os Velvet Underground, os Pixies. quando a minha irmã começou a namorar com um dos meus amigos, eu ainda pensava que não era nem bonita nem interessante, simplesmente não pensava nisso, era uma entre iguais. estava longe de imaginar por isso que, quando um dos rapazes me convidou para ir dar um passeio, tinha outra carta na manga. fomos de noite, no carro dele, conduziu até sairmos da cidade, atravessando a aldeia onde ele vivia até chegar ao campo. entrou com o carro por um caminho de terra e estacionou no meio das oliveiras. quando saímos do carro, eis que tira uma guitarra da bagageira e começa a tocar. não fazia a mais pequena ideia que sabia tocar. cantou o Sweet Jane, e bem. no fim, perante a minha estupefação, beijou-me. estava frio, a lua brilhava. disse-lhe que nunca tinha pensado que ele me achasse piada e ele respondeu com um elogio que me coíbo de reproduzir. surpreendeu-me que, para além da sua galanteria, houvesse também respeito na atitude dele. não andámos muito tempo, éramos amigos mais do que amantes, mas foi com ele que vivi o que de mais próximo conheço à tranquilidade numa relação amorosa. havia entre nós uma delicadeza e um sentido de proteção que não voltei a encontrar. eram, no entanto, apenas aparentemente significativos. a paixão nunca é neutra, necessita de qualquer coisa de desumano para se pronunciar. quando acabámos, a minha mãe ficou um pouco desiludida, percebi que esperava que casasse com ele. secretamente, contudo, eu tinha percebido que preferia lugares ambíguos, incompreensíveis até, mais arbitrários, irregulares e imprecisos. era aí que irremediavelmente podia aperfeiçoar o meu poder.

10 de novembro de 2017

não sou culta. a vontade e a determinação necessárias para fugir ao mundo, refugiando-me nos livros, nos cinemas ou nas conferências, nunca foram mais fortes do que a satisfação de o compreender através da intuição da experiência direta, à exceção porventura da infância, cuja grande parte foi vivida com a cabeça enfiada em livros de toda a espécie, trazidos da biblioteca ou escolhidos de uma das estantes onde o meu pai os guardava. mesmo aí, deixava-me absorver por todo o tipo de contemplações, como por exemplo das expressões das pessoas numa conversa, de quadros, da luz ou da rua deserta à noite. embora aborde as coisas com enorme curiosidade, a minha imaginação, necessária para reter qualquer tipo de informação, é abstrata e mítica, com pouca consideração pela verdade no seu sentido técnico ou histórico. tenho pena, sobretudo nas fases em que escrevo pouco, pois sinto a falta de um corpo de ideias, e tenho vergonha, pois fico excluída da comunidade. é nessas alturas que procuro atualizar-me sobre os acontecimentos mundiais, sobre música, gramática e vocabulário na minha ou noutras línguas, filosofia, artes plásticas, poesia, literatura, política e até mesmo informática. fora isso, não tenho televisão, deixei de comprar jornais e, embora leia algumas notícias na internet, no melhor dos mundos vou menos ou deixo de ir ao facebook, leio mais, escrevo mais, observo mais, oiço a mesma música vezes seguidas dias a fio, desenho, lanço-me.
a cultura é uma dádiva. há contudo uma diferença entre o que e o quê: o conteúdo é sempre mais importante do que o como. daí que não importe quem escreveu nem como escreveu, mas sim o que escreveu. a complexidade e a simplicidade são encontros vindos dos lugares mais surpreendentes, que podem deparar-se com a doçura da nossa aceitação ou com o desdém da nossa recusa que, em momentos diferentes da vida, vamos experimentando. que peso têm as nossas escolhas nesse processo? até que ponto não estamos condenados a ficar carentes da completa erudição por impotência? quando escrevo, o conhecimento brota espontaneamente do silêncio e sou como um vidente que trilha pela noite. há palavras que surgem sem eu as conhecer e que, como pura magia, dão a ver o mundo como ele existe em nós, revelando quer os espaços esquecidos quer os que mais nos atormentam e ainda, entre uns e outros, tão significativa que é, a panóplia de lugares-comuns, banais, secretos, que constituem a nossa vida interior. a minha metodologia é insensível a justificações, de forma, pode dizer-se, intolerável. até o homem mais hábil e informado se sente inseguro a perscrutar o passado ou a prever o futuro: a história é sempre confusão e escrúpulo, como um sonho.
nos bons e velhos tempos, a sedução costumava começar por uma troca de olhares. agora não se passa à ação sem saber pelo menos as preferências musicais no spotify, a escolha de enquadramentos e temas para o instagram, com quem se dá no facebook e os trabalhos que fez no linkedin. o olhar virgem, penetrante e revelador, provavelmente um dos maiores mistérios da vida, arrisca-se a cair em desuso num futuro próximo e a ser substituído por qualquer coisa parda e desbotada.

5 de novembro de 2017

à medida que envelhecem, os casais tornam-se progressivamente menos despudorados, disfarçando os gestos de carinho em público ao contrário dos adolescentes, que os exibem ostensivamente, de forma por vezes provocatória, como se dissessem a alto e bom som «já não sou criança». o lugar público do desejo é tanto maior quanto se desconhece ainda em rigor os instrumentos da sua intensificação e tanto menor quanto são postos em causa, embora subtraí-los aos outros, ocultá-los, não signifique subtrair-se a si próprio. a absoluta naturalidade é uma necessidade tão nítida como um pesadelo e a intimidade, na sua excitada beatitude, é insuportavelmente silenciosa. o que se faz por prazer tem uma dimensão trágica, uma corrente inesperada que nos envolve num turbilhão fulgurante e efémero.

3 de novembro de 2017


uma amiga fala-me da insónia que teve esta noite e eu lembro-me, com saudade, das insónias que anos a fio preencheram as minhas noites. tenho, por momentos, um terrível desejo de voltar a esse tempo cheio de intensidade, alegria, vivacidade, mas também de uma enorme, perigosa, vulnerabilidade que constantemente diminuía a minha capacidade de distinguir entre o bom e o mau, entre mim e o mundo e que, portanto, instalava a confusão e a insegurança. na verdade, é com dificuldade que me recordo desses anos, tenho porventura uma certa repugnância em descrever o que então se passava comigo. daí que momentos como este se tornem tão importantes, aberturas para uma realidade que, pelo menos em memória, posso rever por instantes. na altura, os pensamentos sucediam-se tão rapidamente e eram de tal forma flamejantes que se tornava impossível deter-me num. brevemente, contudo, o brilho e a energia davam lugar à angústia e ao mutismo. o que antes sobressaía como compreensão rápida e prontidão, transformava-se em isolamento e disformidade. num momento mágico e fascinante, subitamente o mundo desferia em cheio a sua ameaça. e eu caía.

2 de novembro de 2017

Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.

Arthur Rimbaud

1 de novembro de 2017

os dois caminham abraçados. o grupo onde eu sigo vai um pouco mais atrás, não nos atrevemos a alcançá-los embora sejamos todos amigos. Z. vê-me a vê-los e vê-os também. somos os únicos que não fazemos mais nada senão observar, todos os outros conversam enquanto nós avançamos em silêncio. a mão de T. pousa na nuca dela e fá-la aproximar-se. está um pouco bêbedo e faz o mesmo que fariam todos os outros homens. ela encolhe-se um pouco, mas ri-se e tenta afastar-se dele que a puxa com força contra o seu corpo. nesse momento penso nas suas alegrias sexuais. o que se passava entre os dois não tinha nada de especial, nem perturbante nem comovedor e, no entanto, um pequeno nervosismo consumia-me. excluída de todo o contacto sexual ou amoroso, os seus vestígios não serviam para mais nada senão para tornar o ressentimento mais pungente.