24 de setembro de 2017

16 de setembro de 2017

eram sombras longínquas, com uma expressão de piedade puramente mecânica, cuja aproximação me repugnava, pois estavam destinadas a perder-se facilmente. uma solidão supérflua e incómoda, inconcebível, persistia no limiar da memória. é isto que constitui o poder, pensei. uma ânsia vem mendigando atenção e, quem a veja, vai apoiá-la, de forma ingénua ou cómica. pelo menos mergulho na terra com espanto e, sem pestanejar, descubro em silêncio o milagre. toco-o e ele desaparece, pois a sua organização interna é inapreensível. para minha deceção, o seu ar de desprezo e de superioridade, ainda que subterrâneo, preenche o céu. embriaga-me um sentimento de culpa, sou impelida por um gesto inoportuno que se esfuma perigosamente. uma força ostensiva impele-me a renunciar à alegria e a inclinar-me à pobreza e à história. é esse o instante da transgressão, quando não há esperança. ergue-se um pó pesado e sujo, o mundo é o mundo na sua despreocupada falta. dela nasce o riso.
chego tarde às coisas, quando sobre elas já se sabe tudo e por isso foram deixadas para trás, devedoras do que a elas se seguiu. é, portanto, com enorme sossego que as abordo, sem contaminações de olhares externos. as descobertas tardias envolvem uma vontade serena, mas precisa, pois o tempo e o espaço foram trabalhados para as receber. o que é o momento certo? aquele que engolfa o corpo no espaço.

14 de setembro de 2017

haverei de hesitar sempre entre as paisagens desconhecidas e as familiares, sem que dessa hesitação venha algum privilégio ou ganho. preciso de viver num sítio onde saiba que há ruas onde nunca entrei, mas há um consolo inestimável em ver aquelas onde aprendi a andar. contudo, não preciso de as visitar. desde que me lembro que o meu movimento se afasta das coisas familiares como da sarna, como se houvesse uma rejeição da intimidade. contrariá-lo é particularmente exigente e nunca me trouxe grandes benefícios. não acredito em coisas que mudam, acredito em coisas que são. às vezes é preciso interpor uma distância entre nós e a intimidade, para que ela não julgue que nos pode fazer promessas. o progresso é o estertor da evidência.
O Campo

Pensei em ti
quando me dizias para nunca deixar
a caixa de fósforos de madeira, daqueles de emergência,
perdida pela casa, uma vez que os ratos


podiam chegar-lhe e começar um incêndio.
Mas a tua cara estava absolutamente séria
quando enroscaste a tampa da lata redonda
em que os fósforos, como disseste, estão guardados.

Quem poderia dormir naquela noite?
Quem poderia afastar a imagem
de um desses improváveis ratos
caminhando por um cano de água fria

por trás do papel de parede às flores
a agarrar um único fósforo
entre as agulhas dos dentes?
Quem não conseguiria imaginá-lo a dobrar a esquina,

a ponta azul raspando contra a madeira rugosa,
a súbita chama, e a criatura
por um claro e brilhante momento
subitamente levada adiante do seu tempo —

agora um pirómano, agora um portador da tocha
de um ritual esquecido, pequeno druida acastanhado
iluminando uma qualquer noite antiquíssima.
Quem poderia deixar de notar,

iluminados pelo radiante isolamento,
o minúsculo ar de surpresa nas faces
dos ratos seus amigos, outrora co-habitantes
daquela que fora a tua casa de campo?

Billy Collins, Amor Universal.

13 de setembro de 2017

falava como se esperasse que ninguém o entendesse, finalizando as frases num tom baixo e arrastado, quase melancólico, que a audiência tinha dificuldade em ouvir. pelo contrário, o orador ao lado falava num estado de exaltação permanente, com frases ritmadas em choque que nos faziam ficar em defesa, como de um ataque pessoal. nisto, entra a mais bela mulher do mundo. uma eletricidade frenética percorre-me o corpo, sou completamente distraída do motivo da reunião para não dizer da existência. a sua beleza atinge-me em pleno no coração aliviando-o de todas as mágoas, feridas e máculas. enquanto se move e fala, sinto-me diante de uma aparição divina que veio ao mundo só para mim. reparo na sua postura indolente, despreocupada. esta mulher traz com ela um tempo que se anula. a cor transparente dos seus olhos e o cabelo em desalinho, que esculpe em diferentes penteados sucessivos, não são deste mundo. dando ares da pessoa mais segura do mundo, falo-lhe e ela o que faz? cora. de olhos no chão e um sorriso tímido no rosto, cora tanto que olho para as suas mãos para ver se não coraram também.
encontrei há anos a desculpa certa para manter este blogue: um caderno de exercícios. o que ninguém sabe é que estou sempre a ter de resistir à tentação de publicar os próprios rascunhos dos textos, quando eles não são mais do que um esqueleto ou uma mera lista de apontamentos incompreensíveis.
as coisas que ele diz são avolumadas. têm mais definição que o resto dos fenómenos, a sua extensão tem força, firmeza, uma ligeira violência devo dizer, que se acentua ou se atenua conforme o seu bom ou mau humor e, sobretudo, as suas intenções. assim, a sua voz amacia-se ou avulta-se em momentos diferentes de uma mesma conversa. quando nos separamos, os seus discursos ecoam por muito tempo na minha memória, criando nela vincos que resistem ao tempo, largamente isolados dos múltiplos discursos das outras pessoas que encontro. por vezes, é apenas uma palavra que se destaca, tão lisa e contrastante que se mostra colossal perante mim própria. é por isso quase incredível descobrir que, sabe-se lá quantas vezes, dissolvo esses discursos no mar do inconsciente, absorvendo-os como se tivessem origem em mim.

12 de setembro de 2017

acredito que, no geral, um homem não é capaz de suportar o envelhecimento de uma mulher. acredito que, por isso, somos invadidos por apelos não só ao rejuvenescimento, como à magreza e ao cuidado com a pele: a beleza está indissociavelmente ligada a uma arreigada sociedade patriarcal. pintar o cabelo, usar cremes contra estrias, rugas, celulite e manchas, tomar remédios para emagrecer, fazer exercício para emagrecer, a tudo isso as mulheres cedem deixando irreconhecível a vida tal como ela é.