15 de janeiro de 2017

Silence is a lot like beauty.
Comecei a trabalhar cedo, embora não tão cedo quanto porventura os meus avós começaram, por volta dos 15, 16 anos, primeiro em apanhas da uva e da azeitona, depois em bares, pastelarias, restaurantes, lojas de roupa e de bugigangas, bibliotecas, entre outros. Sempre trabalhei enquanto estudava, quer para ter uns trocos, quer por fim para terminar o curso. A princípio, ainda pensava — embora a isso induzida e sem real vontade — que um dia iria encontrar um bom emprego, uma coisa que eu gostasse verdadeiramente de fazer e cujos rendimentos me permitissem viajar depois de pagar as contas. Na minha inocência, desconhecia então que as promessas que me tinham feito («se te esforçares, encontrarás») eram nulas. Algures durante o percurso, o trabalho passou a representar portanto um esforço vão, e o que me cai na conta muitas vezes nem chega para tudo. Claro que cometi erros nas decisões que tomei. Recusei-me por exemplo a viver exilada, a receber cunhas, como me recusei a trabalhar para multinacionais, nomeadamente relacionadas com a banca e com petrolíferas. Também me despedi quando me disseram que tinha de trabalhar no dia 1 de maio e não baixei a cabeça em silêncio quando me encontrei debaixo de gritos dos patrões. Com isto, fiz do caminho um calvário que não está prestes a terminar. Tudo excelentes razões, parece-me, para que tenha lançado a puro descrédito o valor do trabalho, tornando-se este um flagelo que tenho de suportar todos os dias. As pessoas que gostam de trabalhar, mesmo fora de horas e ao fim de semana, tornaram-se algozes brutais, por alimentarem o movimento da roda de onde hoje me esforço por sair. Ignoro o que as motiva e ignoro como conseguem encontrar no trabalho motivos de emancipação, realização e felicidade. Um amigo disse-me um dia que deveria escolher o trabalho que pagasse para fazer e não o trabalho que pagasse bem. Mas a verdade é que o único trabalho que pagaria para fazer não paga nem bem nem mal, não paga nada, e esse acaba por ser mesmo um dos seus atributos mais valiosos. Aquilo que gosto de fazer é completamente inútil, anónimo, um desperdício de tempo na plena aceção da palavra. O tempo, esse que dizem que vale dinheiro, torna-se fruição, paixão, transformando cada momento em vida a gerar vida.

11 de janeiro de 2017

Tudo o que não invento é falso.

Manoel de Barros
No habrá una sola cosa que no sea una nube. 

Jorge Luis Borges

10 de janeiro de 2017

Quando era pequena — tanto que as minhas memórias desse tempo são vagas —, tinha um ritual que forçava a minha família a cumprir: devíamos reunir-nos aos domingos, em casa da minha avó, para o «chá com todos». A pequena mesa da sala, com pés finos e um tampo de mármore, sobre a qual a minha avó colocava uma toalha de renda fina, enchia-se de bolos de cabeça, brendeiras, línguas de veado, bolos de noz e de amêndoa e, claro está, um bule de chá, forte e cheiroso. Se porventura alguém dissesse que não podia estar presente no próximo domingo eu sofria a maior das angústias, massacrando os meus pais com porquês e procurando convencê-los a convencer o familiar em questão a estar presente. Não sei exatamente quando deixámos de nos reunir mas creio que foi por altura do divórcio dos meus pais, quando eu, por muita angústia que guardasse, já não falava. Ainda hoje, porém, frequentemente me interrogo sobre a intensidade emocional que estes encontros me causavam e que, de alguma forma, penso estar ligada a um desejo de integração frustrado que a demanda comunitária pretendia disfarçar. Como a solidão pode ser tão relevante desde logo na infância é algo que me surpreende. Durante muitos anos mantive a convicção de que poderia adaptar-me, senão à sociedade (pois o que é a sociedade?) pelo menos a um grupo, qualquer grupo. No entanto, nunca fui nada. Enquanto me juntava ao grande trânsito da cidade, subindo e descendo escadas para apanhar transportes, correndo para conseguir um lugar nas filas, ouvindo o rádio, vendo televisão, procurando um lugar nas repartições do Estado, sabia que a grande diferença entre mim e aquelas pessoas era que eu não tinha casa e, por isso, o meu tempo sempre foi contemplativo, sem afã. As minhas urgências encontram-se rodeadas de incompreensão, não só dos outros em relação a elas mas também de mim em relação aos outros e fundamentalmente em relação à vida em si. Não posso dizer que não tenho já o desejo de me integrar. Quando vejo casais com prole, quando sei de amigos que viajam ou que produziram alguma coisa, ocorre uma centelha despertar em mim a pergunta «e não poderia eu?». Contudo, já não tenho a ilusão de pertencer e mesmo essa centelha é cada vez mais longínqua, rara e ténue. Sei que, ainda que fizesse alguma dessas coisas, seria sempre de modo isolado, pois o meu país, a minha casa, consumiu-se, desapareceu, se é que alguma vez existiu, e não haverá regresso. Levei anos para conseguir encontrar nisso alguma paz e, se a encontrei, foi também através do exemplo de pessoas que muito prezo e que aceitam, não sem por vezes a contestarem, a minha simplicidade e a minha ignorância. Mas as pessoas, como as casas, não permanecem. E é assim que está bem; embora todos procuremos alguém que nos compreenda, esse momento redentor, para quem tem a sorte de o viver, será efémero. Outra razão essencial foi a literatura, cujo encontro silencioso sem cessar me enriquece.

7 de janeiro de 2017

Há noites em que me acordo a falar. Não se trata de um discurso qualquer, por vezes sequer é um discurso, antes apenas uma palavra, como por exemplo NÃO, para referir uma das mais recorrentes. Esse momento do sonho — porque estas palavras estão inseridas num contexto preciso — é de tal forma violento que todo o meu corpo se rebela e reage com uma fúria, uma certeza e uma determinação implacáveis, conduzindo-me à vigília ou, mais precisamente, conduzindo o próprio sonho à vigília. Se são ou não gritos, não sei bem. Sei que me levanto ao pronunciar essas palavras e que a minha força nesse instante (força da voz, força do corpo) consegue tornar indiscernível a fronteira entre o sonho e a vigília, de modo que preciso de algum tempo até deixar definitivamente de sonhar o sonho que me acordou. Estes são os melhores sonhos. Há outros em que é apenas o corpo que luta, e a voz, por alguma razão misteriosa, permanece muda. Uma grande tristeza me inunda quando acordo e invariavelmente penso: «ainda não sei falar».

5 de janeiro de 2017

A primeira ópera que sobreviveu até à atualidade foi escrita para as bodas de Henrique IV e Maria de Médicis em 1600. É um trabalho de Jacopo Peri intitulado Eurídice, realizado após aquela que foi a primeira obra considerada uma ópera, Dafne, escrita aproximadamente no ano de 1594, no final do Renascimento, em Florença, por Jacopo Peri e Rinuccini, para um círculo de humanistas florentinos e atualmente desaparecida. As origens da Ópera são no entanto bastante anteriores, remontando à tragédia grega e aos cantos carnavalescos italianos do século XIV. Fui procurar esta informação, depois de, ao escutar uma peça na rádio, mais uma vez renovar o meu fascínio por este género. Não sei ainda porquê, mas creio encontrar ecos deste fascínio em algumas músicas da Pop, mais exatamente em músicas onde alguém grita. Como se apenas no extremo das vozes se encontrasse um limiar, a partir do qual tudo — e por tudo quero dizer também aquilo que é insondável — se descobre simultâneo na origem que o torna existente. 




3 de janeiro de 2017

de repente, no regresso a casa, um ruído de fundo preenche o ouvido e todavia diz-se esta uma rua silenciosa. algumas vozes ao fundo da rua no café, o meu gato que brinca com uma peça de plástico, um avião e agora o som das teclas enquanto escrevo. as paisagens sonoras, quanto mais silenciosas, mais perfeitas, diria, mas nem sempre foi assim. houve um tempo em que o silêncio era sinónimo de opressão e, penso agora, quem sabe se não me conformei simplesmente à angústia que dele emana, transmutando-a numa contemplação aparentemente inócua? porque haveria perfeição na imobilidade e na quietude e não precisamente na revolta e na afeção? aquilo que o corpo prepara em segredo muda a vida.

1 de janeiro de 2017

Chaque parole a une conséquence. Chaque silence aussi.

Jean-Paul Sartre
Tenho admiração por aqueles que descem em barda ao centro das cidades para assistir a fogos de artifício. Pelos homens que, com o avançar da noite e em silêncio, se servem de bebidas cada vez mais fortes. Pelas conversas, sobre o passado e as crianças, que se mantêm até altas horas à volta da mesa. Observo tudo como se nem à minha própria pele pertencesse.