17 de agosto de 2016

gosto de pintura desde criança mas não sei por que motivo a minha sensibilidade se especializou num certo tipo de pintura, de grande depuramento visual. digo visual e não estético, não por acaso. uma depuração estética encontra-se por exemplo nos trabalhos do construtivismo russo, na Bauhaus, no Neoplasticismo, como por exemplo no Mondrian, cuja pintura é puramente racionalista na depuração das formas. o que me fascina na pintura é comum a artistas como Vincent Van Gogh, Giorgio Morandi, Vilhelm Hammershøi, Frida Kahlo, David Hockney e Francisco de Zurbarán. qualquer coisa nessas pinturas as excede, atravessando as décadas e os centenários, contando uma história do silêncio, da alegria, da limpidez e da inocência, creio que esta palavra é fundamental. mas há nelas outra coisa, algo que não está presente por exemplo em Claude Monet ou em Edward Hopper. trata-se talvez de uma abstração formal que serve a reflexão existencial, filosófica, especialmente quando representam o quotidiano. quando Hopper pinta Sol da manhã, nós não somos aquela mulher. ela está sozinha e assim permanecerá para sempre, a apanhar sol pela manhã, porventura acompanhada apenas pelo pintor. mas, mesmo representadas de costas, nós somos as mulheres de Vilhelm Hammershøi e a grande banalidade das suas vidas.

16 de agosto de 2016

ao longo da minha infância e adolescência, tinha um grande espírito missionário. não só achava que me estava destinado viver coisas maravilhosas, como achava que a minha vida tinha um propósito que, mais cedo ou mais tarde, iria desvendar-se diante de mim. agora pergunto coisas como «qual é a relação entre a solidão e a liberdade» e não obtenho respostas, como se o mundo tivesse fechado a sua porta, contanto sejam palavras com um significado profundo. a pobreza infligiu talvez demasiados danos no meu espírito, tudo me parece em vão. as perguntas e os acontecimentos deixaram de ter o poder de mudar a vida. nenhum exemplo admirável transforma a força das emoções. hoje interessam-me os assuntos sobre os quais as pessoas não falam abertamente e todos os deveres me parecem fictícios. essas inibições e persuasões são preponderantes sobre as perguntas, embora por vezes acabem por se mostrar interligadas. quando queria fazer muitas coisas, achava sempre que não teria tempo. agora nunca penso isso, pelo contrário, o que me permite concretizar algumas coisas. a prática tomou preponderância sobre o sentido da vida, que há muito se esfumou.
disseram-me há tempos que devemos atribuir grande importância às quebras de linha nos poemas, ou seja, à decisão de fazer daquelas palavras um verso. ora, a grande maioria dos poemas que escrevi não tem qualquer quebra de linha. pergunto-me o que isso quererá dizer. será que tudo quer sempre dizer alguma coisa?

15 de agosto de 2016

nunca se sabe quando uma decisão não se torna o início de uma catástrofe. o fogo de artifício soa ao longe, os cães chiam, carros passam sobre a ponte em dois sentidos, aparentemente tudo está bem. mas num momento tudo muda, o silêncio expande-se, as pontes caem e nós, sem sabermos como, encontramo-nos em becos sem saída. contudo, o que é o amor senão um beco sem saída?

14 de agosto de 2016

Gosto do meu trabalho nas urgências. Sangue, ossos, tendões parecem-me afirmações. Fico fascinada com o corpo humano, com a sua resistência. Graças a Deus — porque as radiografias e a petidina vão demorar horas. Talvez seja mórbida. Fico fascinada com dois dedos num saquinho, com a navalha de ponta e mola reluzente a sair das costas de um chulo. Gosto do facto de, nas urgências, tudo poder ser remediado, ou não.
Códigos Azuis. Bem, toda a gente adora os Códigos Azuis. É quando alguém morre — o coração pára de bater, eles param de respirar —, mas a equipa das urgências pode, e muitas vezes consegue, ressuscitá-los. Mesmo que o paciente tenha uns oitenta anos estafados, é impossível não se ficar empolgado com a emoção do processo, pelo menos durante um tempo. Salvam-se muitas vidas, vidas jovens e proveitosas. (...).
Os ciganos são mortes boas. Eu acho... as outras enfermeiras não, e os seguranças também não. Há sempre dezenas deles que exigem estar com o moribundo, que o beijam e o abraçam, a desligar e a estragar os televisores e os monitores e o resto dos aparelhos. A melhor coisa nas mortes ciganas é eles nunca mandarem calar os miúdos. Os adultos clamam e choram, mas todas as crianças continuam a correr e a brincar e a rir, sem que lhes seja dito que devem estar tristes ou mostrar-se respeitosas.

Lucia Berlin, Bloco de notas das urgências, 1977, in Manual para mulheres de limpeza.
o envelhecimento sobrepõe-se à nossa vontade e não é possível falar dele senão como uma fase de desenvolvimento. os auto-retratos confessionais excedem o sentido da vida e tornam-se depoimentos de sobrevivência onde o Belo e o Feio exercem a sua autoridade. as raízes, a família, o conhecimento, criam, afinal, espaços de onde desaparecemos, a identidade organizando-se como uma malha desadequada, apenas um reflexo dessa entrega, ainda assim em constante renovação. em última instância, o que está em causa não é a natureza do tempo mas sim a variedade da fome e o seu funcionamento transgressivo na nossa história.

8 de agosto de 2016

5 de agosto de 2016

da forma como aquilo aconteceu, ficou convencido de que não mudara completamente, embora acreditasse que tudo o que ela disse era verdade. caminhavam devagar sobre a relva bravia. é preciso cortá-la, disse-lhe. temos de arranjar uma máquina, respondeu ela, achas que podemos pedir emprestada a alguém? um pouco ansioso disse-lhe que deviam ter dinheiro para pagar a um jardineiro e comprar uma. ela notou. perguntou-lhe se alguma coisa não estava bem. ele fitou-a nos olhos e sorriu na obscuridade. os olhos dela eram profundos e venenosos quando estava desconfiada. vais-me deixar?, perguntou. ainda não.

4 de agosto de 2016

Balada Amarilla IV

Sobre el cielo
de las margaritas ando.

Yo imagino esta tarde
que soy santo.
Me pusieron la luna
en las manos.
Yo la puse otra vez
en los espacios
y el Señor me premió
con la rosa y el halo.

Sobre el cielo
de las margaritas ando.

Y ahora voy
por este campo
a librar a las niñas
de galanes malos
y dar monedas de oro
a todos los muchachos.

Sobre el cielo
de las margaritas ando.

Federico García Lorca

3 de agosto de 2016