29 de abril de 2016

as decisões determinantes da minha vida foram motivadas pela noção que tenho de mim própria enquanto animal. creio que pode ser isso aquilo que melhor distingue uma mulher de um homem.

20 de abril de 2016

Estou convencida de que
faz parte integrante da vida na terra
sermos magoados
naquilo a que somos mais sensíveis,
no que nos é mais insuportável:
o essencial
é como nos saímos disso.

Rahel Varnhagen

18 de abril de 2016

apesar dos tons pastel e da luz intensa que, à exceção da base, preenche todo o quadro, fico a pensar «porque é que a igreja e as árvores têm a cor do céu?». é como se víssemos uma imagem do que outrora foi e se desfez. com toda a sua luz e aparente tranquilidade — transmitida unicamente pelas cores e em contraste (em curto-circuito) com a onda que estala no céu , é uma imagem de destruição, de morte. o que ainda vemos erguido, refletindo o seu duplo na água, é uma ruína. não estará lá, não está lá. aquilo que vemos é já pó.

William Turner, Quillebeuf, Mouth of the Seine, 1833.

16 de abril de 2016

Mrs. Dalloway is always giving parties to cover the silence.

Virginia Woolf

15 de abril de 2016

Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para mim. O pouco significarem garante-me completa liberdade e isenção, em ordem a uma nova linguagem (…). Interessa-me, portanto, chegado que sou à convicção de me haver limitado, nos livros anteriores, a mover-me em círculo sobre uma linguagem esgotada – interessa-me, digo, muito menos executar uma gramática literária, destinada ao diálogo, do que perfazer um organismo internamente coerente e bastante. A comunicação será consequente, se for. De qualquer modo, bani a ideia do diálogo no meu estilo. Mas sinto-me ligado aos escritos antigos como alguém se pode sentir ligado a um paciente e doloroso erro.

Herberto Helder em entrevista, 1964.
saí e sentei-me ali mesmo nos degraus, onde enrolei um cigarro cuja perfeição contemplei por um momento. o futuro chegou ao cabo sem pasmo, num pequeno silêncio.

9 de abril de 2016

— sombra.

Al Berto, in Apresentação da noite.

6 de abril de 2016

O facto de haver qualquer coisa risível nisto tudo, neste conjunto de homens sentados com as calças puxadas até aos joelhos, cada um na sua própria cabine, grunhindo e gemendo e mexendo no pénis enquanto viam filmes de mulheres a fazerem sexo com cavalos ou cães, ou de homens com outros homens, era algo que nem eles próprios podiam negar, mas também não o admitiam, uma vez que o riso verdadeiro e o verdadeiro desejo são incompatíveis, e tinha sido o desejo que os conduzira até lá.

Karl Ove Knausgård, A Morte do Pai.

John Constable, Cloud study 6 September 1822

5 de abril de 2016

Margarida Magalhães

Breath (pneuma) has always been seen as a sign of life... Language is speech before it is anything. It is born of babble and shaped by imitating other sounds. It therefore must be listened to while it is being written. So the next time someone asks you that stupid question, “Who is your audience?” or “Whom do you write for?” you can answer, “The ear.” I don’t just read Henry James; I hear him... The writer must be a musician—accordingly. Look at what you’ve written, but later... at your leisure. First — listen.

William H. Gass, in The Sentence Seeks Its Form, encontrado aqui.


Agnès Varda, Uncle Yanco (1967).

3 de abril de 2016

(...) — beaucoup de rêves, un rare éclair, un rare éclair de bonheur, un peu de colère, puis le désillusion, des années de souffrance et la fin — (...).

W. G. Sebald, in Os Anéis de Saturno citando Joseph Conrad.

1 de abril de 2016

DER HIMMEL ÜBER BERLIN, Wim Wenders, 1987.
           
Amadurecer significa separar de forma mais nítida, ligar de forma mais íntima.

Hugo von Hofmannsthal, O Livro dos Amigos.

31 de março de 2016

FAIRY

Para Helena se conjuraram as seivas ornamentais nas sombras virgens e as claridades impassíveis do silêncio astral. O ardor do estio foi confiado a aves mudas e a indolência requerida a uma barca de lutos sem preço por angras de amores mortos e de perfumes esparsos.
— Depois do momento do canto dos lenhadores rumor de torrente sob a ruína dos bosques, dos chocalhos do gado ecoando nos vales; e dos gritos na estepe.
Para a infância de Helena tremeram as peliças e as sombras, — e o peito dos pobres, e as lendas do céu.
E seus olhos e danças ainda superiores às cintilações preciosas, às influências frias, ao prazer do cenário e da hora únicos.

Jean-Arthur Rimbaud
Não contes a ninguém o que viste, fica-te pela imagem.
inscrição no oráculo de Dodona (Grécia).

de visita à terra natal, assombra-me o facto de, há um ano, ter tido tamanha ilusão acerca dela que cheguei mesmo a pensar, ainda que por breves momentos, na possibilidade de aqui voltar a viver. foi, claro, uma ilusão breve, e contudo, que assustadora. não há, como nunca houve, qualquer lugar para mim aqui. quando digo «qualquer lugar», isso significa que sou obrigada a manter-me inteiramente e a todo o momento em segredo. naturalmente que a exaustão chega a dado momento, por vezes de forma abrupta, por vezes gradualmente, como um vómito que se consegue ou não conter. nos casos em que não posso controlar a explosão, a minha estranheza impõe-se repentinamente como um colosso, bizarro, disforme, sem medida. quando, por qualquer motivo, pretendo ajustar-me, é, ao contrário, uma implosão que se dá, e debato-me no meu mutismo sem aceitar que não tenho chão onde repousar. todos esses fantasmas me perseguem desde sempre, pois não há dúvida de que aqui existe amor. que espécie de ser se debela contra o amor com tanta repugnância? que espécie de ser se afirma por adversão a coisas tão simples como as que aqui existem? incapaz de transmutar a rebeldia em docilidade, refugiei-me na solidão e na escrita, contra as quais, há que dizê-lo, também luto. que espécie de ser não tem lugar sobre a terra? pois eu procuro dizer tudo o que vejo — desejo dizê-lo —, mergulhar nessa repugnância para a desmascarar e desnudar, tal como ela me desnuda a mim. dizer aquilo que ninguém diz, violar o silêncio e erguer-me em plena luz.
tanto sofrimento em troca de tão inútil clarividência. imagem irrealizável, impossível de acender e impossível de apagar; silêncio sem fôlego, contudo, pensante, como uma pacificadora intuição primordial. deve ser isto o inferno, bocas que não emitem som, narizes que não inspiram, mãos que não tocam, olhos que abertos nada vislumbram. que luz íntima não irradia? tanto azul, tanto céu, demasiado céu. por toda a parte ele está, em toda a parte é nele que estou. objetivo e místico, o tempo pertence-lhe por inteiro, como uma bigorna. nenhuma fuga. opaca e rejeitada como uma pequena lasca incómoda, sequer um raio nele desce ao meu encontro. que código regula as extravagâncias da razão? no centro do mundo, nenhuma essência é condenada: que tudo está a nascer significa também que já tudo morreu. nisso reside o pacto com a vida. nem a solidão nem a loucura nem o diabo na sua ambivalência nem a fome em todas as suas vertentes me corromperam e eu caminho sobre as vossas cabeças.

27 de março de 2016

demasiado céu.

18 de março de 2016

Proença da Beira, por exemplo, uma cidade a norte de Portugal, com os seus cafés, jardins, empresas e casas: não aparece nos mapas. Passei por lá há uns anos quando estava perdido a caminho de Valpaços, através da nacional. Lembro-me de ficar incrédulo por umas mulheres já estarem a lavar no tanque àquelas horas, do som da roupa encharcada a bater no cimento. Fora isso, um silêncio absoluto. Tivessem-me descrito o quadro e tê-las-ia imaginado em viva tagarelice ou a cantar. Era trabalho árduo, a hora imprópria até para madrugadores e a água estava fria, de repente parecia-me ridículo que tivesse podido imaginar alguém a cantar debaixo de tanta nitidez. Apenas uma delas olhou para mim dentro do carro vermelho, a meio de um gesto. Parei no Café Central para comer uma bifana, aviar um copo de vinho branco e pedir direções. Passei os olhos pela secção de necrologia do jornal, como se os mortos confirmassem a realidade, e acabei por me demorar mais porque começou a chover. Ainda vi passar um homem que gritou para dentro do café «Vais lá aparecer logo?», a quem responderam «Tu agora não queres mai' nada!». Já de saída fui encher a garrafa num bebedouro de granito com a inscrição «1872», que ficava à frente de uma capela, bem bonita aliás, de estilo medieval. Só quando finalmente cheguei ao meu destino me apercebi do insólito. Cheguei a procurar mapas em bibliotecas e lojas da especialidade, em nenhum encontrei sequer uma referência. Seria um nome antigo e a placa onde o vi assinalado resultante de uma comemoração histórica? Mesmo assim, não deixaria de ser inédito. Como pensar nela? Como uma cidade fantasma? Ou como uma cidade imaginária que realmente passou a existir?