28 de fevereiro de 2016

a infância é insuperável






25 de fevereiro de 2016

Os amores
que não tive
(e foram
muitos)
moeram-me
o juízo

Também
não tive
muitos filhos
isto é
não tive
nenhum
Não
me queixo
O que
não foi
(e foi muito)
deu-me
muito trabalho
e muito

Adília Lopes, Capilé.

17 de fevereiro de 2016

ontem à noite adormeci pela primeira vez na minha vida a contar carneiros. nas minhas insónias procurei frequentemente fazê-lo, desistindo contudo rapidamente ao perceber que as imagens que me tinham chegado, de desenhos de carneiros a saltar cercas, pelo esforço que tinha de fazer para as construir, me deixavam impaciente ao invés de me relaxarem. assim, ao longo dos anos, contar carneiros para adormecer transformou-se num mistério incompreensível que excitava a minha curiosidade. quando ontem percebi que a insónia estava a querer alapar-se, lembrei-me dos carneiros e recusei-me a vê-los galgar a cerca. de imediato, os carneiros começaram a entrar num curral, tal como fazem quando regressam do pastoreio, esgueirando-se rapidamente pela entrada à frente de um cão que ladrava.
Mas qual é a natureza desse segredo? A única coisa que posso dizer é que tem a ver com a mãe que se teve. Sinto que o mesmo se passou com Lawrence e Rimbaud. A rebeldia que partilho com eles advém deste problema que, tanto quanto consigo exprimi-lo, é o da procura do elo que verdadeiramente nos liga à humanidade. Se se faz parte deste tipo de pessoas, esse elo não se encontra nem na vida pessoal nem na vida coletiva. Trata-se de pessoas inadaptáveis até ao ponto de poderem enlouquecer. Deseja-se encontrar uma alma gémea, mas olha-se à volta e vê-se uma vastidão vazia. Sente-se necessidade de um professor, mas falta-nos a humildade, a flexibilidade, a paciência que é exigida. Nem com os que são grandes de espírito nos sentimos à-vontade; mesmo as pessoas capazes da maior elevação nos parecem incompletas ou suspeitas. E, contudo, só temos afinidades com estes tipos mais elevados. É um dilema de primeira amplitude, um dilema carregado de maior significado. Tem que se determinar a diferença específica da nossa peculiar existência e, ao fazê-lo, descobrir o nosso parentesco com toda a humanidade, mesmo com a mais inferior. A palavra chave é aceitação. Mas a aceitação é, ao mesmo tempo, o grande obstáculo. Tem que ser uma aceitação total e não mero conformismo.
Mas, o que faz com que seja tão difícil, para este tipo de pessoas, aceitar o mundo? Entendo hoje que é o facto de, nos primeiros anos, todo o lado escuro da vida e, claro está, da existência pessoal, ter sido suprimido, ter sido sido tão completamente reprimido que se tornou irreconhecível. Não ter rejeitado esse lado escuro da existência teria significado, pelo menos somos inconscientemente levados a chegar a essa conclusão, teria significado uma perda de liberdade. A liberdade anda intimamente ligada à diferenciação. Neste capítulo, salvação significa apenas a preservação da nossa identidade própria e única, no seio de um mundo que tende a uniformizar tudo e todos. É aqui que reside a raiz do medo. Rimbaud sublinhou o facto de querer a liberdade na salvação. Mas só há salvação se houver rendição incondicional desta liberdade ilusória. A liberdade que ele exigia era a do seu ego poder manifestar-se sem restrições. Ora isso não é a liberdade. Debaixo desta ilusão, se se viver o tempo suficiente, é perfeitamente possível dar livre curso a todas as facetas do nosso ser e, mesmo assim, continuar a encontrar razão de queixa, ou seja, fundamento para a revolta. É um tipo de liberdade que nos dá o direito de objetar e, se necessário, de nos separarmos dos outros. Não leva em linha de conta as diferenças dos outros, mas apenas as nossas. Essa liberdade nunca nos ajudará a encontrar o nosso elo, a nossa comunhão com a humanidade no seu conjunto. Fica-se separado para sempre, isolado para sempre.
Para mim, tudo isto tem apenas um significado: é que continuamos ligados à nossa mãe. A rebelião, nas suas variadas formas, é mera poeira nos olhos; uma tentativa desesperada de esconder essa nossa dependência. homens desta espécie, serão sempre hostis à terra que os viu nascer, e é impossível que assim não seja. Para eles a sujeição, quer seja a uma igreja, a um país ou a uma sociedade, há-de ser sempre o grande espantalho. Gastam a vida a quebrar grilhetas, mas a sua secreta dependência devora-lhes as entranhas e não lhes dá descanso. Antes de conseguirem libertar-se da obsessão das grilhetas, hão-de ter que se haver com a sua própria mãe. «Fora! Fora, para sempre! Sentemo-nos no degrau da porta do útero materno.» Creio bem que são estas as minhas palavras na Primavera Negra, em que falo de um período dourado em que quase cheguei a estar na posse do segredo. De facto, não espanta a alienação em relação à mãe. Nunca se dá por ela, a não ser como obstáculo. Queremos o conforto e a segurança daquele útero, aquela escuridão, aquela paz, que para a criança que vai nascer são o equivalente da luz e da aceitação que rodeiam o ser que já nasceu. A sociedade é feita de portas fechadas, de tabus, leis, repressões e supressões. Não dispomos de nenhuma maneira de dominar esses elementos que configuram a sociedade e com os quais é preciso trabalhar, se quisermos alguma vez estabelecer uma verdadeira sociedade. É uma dança perpétua à borda de uma cratera. É possível que se seja aclamado como grande rebelde, mas nunca se será amado. E, mais que qualquer outro homem, o rebelde precisa de conhecer o amor, mais ainda dá-lo que recebê-lo, e mais ainda sê-lo que dá-lo.

Henry Miller, O Tempo dos Assassinos.

Nota: não me recordo já do útero materno, mas ficou-me esta frase do livro A Primavera Negra, "Todos os dias escrevo a partir do nada."

16 de fevereiro de 2016

ombro a ombro
o céu o inferno ocupa
com diálogos
Certos dons do espírito, como a inteligência e a ética ( por exemplo), são áridas, pouco atraentes, insípidas; para o mundo exuberantemente coisificado de hoje, não retém a atenção, muito menos a graça e o sabor do que se entende por 'esprit'. Por isso, precisamos nos corromper: vestir belas e estampadas roupas, vulgares maquiagens, rebuscada língua. Porém, o núcleo nu e cru da persona continua a ser duro e indivisível, como o lamento de um profeta ou a pata do pária. Mas silêncio!, ninguém pode saber.

Luiz Soares Júnior
o que corrompe o amor é de tal forma inúmero que a lealdade dos assassinos direta, cruel e implacável , é imaculada.
a violeta evoca o riso
na catástrofe
o silêncio é loquaz
uma profunda inquietação apodera-se da personagem que, silenciosa, abre os olhos e levanta a cabeça. está adormecida, depois de ter recebido um duro golpe. dirige o olhar para o leitor. chama de volta a falsidade e jura que falará a verdade. a desproporção daquilo que se prepara no suspense e a sua situação real, envolve-a numa espécie de feitiço, estonteante, de que se mantém inteiramente consciente mas vê-se incapaz de resolver o paradoxo. o seu enigma é tão monstruoso que começa a interpretar as palavras de forma incorreta. a perturbação interior transforma-se em ansiedade e a ansiedade em angústia. é impossível ficar indiferente ao seu isolamento. descobre agora todas as omissões propositadas, as incompletudes, a fragmentação, a radicalidade do mutismo mas, pasmada, não consegue sentir cólera pelo que, digamos, de forma tão verdadeira se revela na sua representação. incapaz porém de retornar à sua natureza, mais do que nunca dúbia e incerta, logo a seguir abandona o livro.

15 de fevereiro de 2016

Hydre intime, sans gueules,
qui mine et désole.

Arthur Rimbaud in Comédie de la Soif, maio de 1872.