3 de dezembro de 2015

enquanto há luz em minha casa até a mais opressiva mediocridade é leve e o ruído do relógio passa despercebido, mergulhado num plácido silêncio. apenas a vontade de fumar me recorda ligeiramente de mim e o que sonhei na noite anterior parece pertencer a outrem, uma entidade distinta da matéria, definida por uma impossibilidade absoluta. não há angústia nem violência senão na falta de som. no anonimato ressoa a alucinação do esgotamento, e o esgotamento nunca é inspirado, é um jogo perverso cujas regras alimentam um corpo gerado por excesso de intimidade, excesso de isolamento, excesso de ambiguidade e demasiado próximo da morte. como um escândalo sem revolta.

2 de dezembro de 2015

acabarei sem memórias de qualquer espécie. quando um miúdo olhar estarrecido para o meu inescrutável rosto de velha, serei tão ignorante como ele sobre como terei ganho aquelas rugas. terei menos caminhos do que aqueles que tenho hoje, saberei menos de mim, o mundo será ainda menos vasto. tenho contudo esta esperança, de ficar reduzida apenas ao suficiente: à minha linguagem.

25 de novembro de 2015

19 de novembro de 2015

17 de novembro de 2015

há nele qualquer coisa que não se descarta facilmente, isso é inequívoco. como uma arma.
mas quando a vês, o que é que sentes?, perguntou G., olhando para o interior da vila cuja primeira porta, do lado direito, cheirava a azeite.
és muito inteligente, disse-lhe, gosto tanto disso.
começámos a percorrer a estrada ao lado dos renques de oliveiras, o crepúsculo ameaçava com frio.
ela não gosta de mim, declarei.
gosta sim, respondeu G., com uma certa impaciência, mas com um tom que, por me parecer realista, se tornou inquietante. quis responder-lhe com um não fulminante, que a enchesse de vergonha. mas fiquei em silêncio. subitamente tornou-se claro que o motivo da sua vinda era outro. a atmosfera inclinou-se para um recolhimento quase absoluto. ouvi os animais, os bois, os cavalos, os cães, e, mais longínquo, o som irreversível de uma máquina, um carro que passava a caminho da autoestrada por trás dos montes e das casas. sem qualquer receio disse-lhe que esta noite já não íamos a lado nenhum.


16 de novembro de 2015

The Single Hound

On my volcano grows the grass,—
A meditative spot,
An area for a bird to choose
Would be the general thought.

How red the fire reeks below,
How insecure the sod—
Did I disclose, would populate
With awe my solitude.

Emily Dickinson

13 de novembro de 2015

Ki-nam Soo ocupou o lugar número 62 no autocarro e olhou através da janela para o pequeno bosque que começava do outro lado da praça e se estendia por cerca de cinquenta hectares até às margens do lago Changpae, à beira do qual a cidade de Taedong-san começava, prolongando-se depois até à base da montanha Baekdu Cheonji, onde todo o sinal de vida humana terminava totalmente, e também os cheiros, pois estava coberta de neve todo o ano. depois ajeitou as abas do casaco uma sobre a outra e poisou as mãos sobre a barriga, preparando-se definitivamente para a viagem. ao seu lado no banco viajava a nora e, pousado entre ambos, um saco de pano contendo uma caixa com bulgogi, outra menor com kimchi, uma garrafa de bokbunja, um chocolate e duas cartas, uma delas selada há vinte e três anos, a outra escrita há alguns dias atrás, tudo embrulhado em papel vermelho com uma fita de tule amarela. por cima, cuidadosamente atado com fio de algodão, um ramo de rosas Sharon, a flor imortal, símbolo de quem ultrapassa o sofrimento e enfim, no chão, presa entre os pés da nora, uma melancia com 12 quilos. tinha sido dos primeiros a sentar-se e portanto ouvia agora os outros falar ainda entre si, alto e depressa, enquanto arrumavam malas e procuravam ansiosamente o lugar que lhes havia cabido no último sorteio, o primeiro em cinco anos, pois este grupo de 68 sul-coreanos, do qual Ki-nam Soo fazia parte, integrava-se noutro maior, de 398, pertencentes a 96 famílias ao todo que viajariam dentro de minutos até ao norte da Coreia para reencontrar os 141 familiares que, devido à guerra entre o norte e o sul, não viram durante os últimos sessenta anos, ou mais. na lista de espera para o próximo sorteio, que não se sabe quando se voltará a realizar, ficaram mais de 65.000 sul-coreanos. mas Ki-nam Soo agora esqueceu tudo isso. tem um filho. chama-se Lee Dong-im e tinha 9 meses quando o viu pela última vez, agora tem 66. «está vivo», alegra-se Ki-nam Soo desde que soube que tinha sido selecionado, «estou vivo», alegra-se. a viagem leva três horas e a reunião entre as famílias duas. em apenas três horas, irá rever o rosto desse bebé. em poucas horas será isso, um homem adulto. sabe que irá revê-lo pela primeira e pela última vez pois as hipóteses de um reencontro são inexistentes. Ki-nam Soo e Lee Dong-im encontram-se agora pela primeira e pela última vez. um primeiro encontro que é uma despedida.

10 de novembro de 2015

libertar-se do rancor, concluiu, para deixar de viver no passado. não o ia levar para a cova, isso nem pensar, ficar a remoer para quê. a descoberta declarava-se como uma ocasião de questionar o tempo preciso da epifania, da maravilha ao espanto à surpresa. assim é a perda, a desordem, o exílio imutável. não passava de um fugitivo e, de maneira estranha, um filho repugnante da morte. dia após dia, o corpo era a sua única estratégia de retornar à infância, que abandonámos e onde igualmente vivemos.

6 de novembro de 2015

Ouvrez quelques cadavres: vous verrez aussitôt disparaître l’obscurité que la seule observation n’avait pu dissiper. La nuit vivante se dissipe à la clarté de la mort.

Michel Foucault, Naissance de la clinique.

31 de outubro de 2015

Não quero negativar a vibe de ninguém. Só ando desacreditado da vida e sem a mínima vontade de interagir com o mundo. Tem dias que acordo pensando em tomar 4 cartelas de remédios ou amarrar uma corda no pescoço e foda-se. Estou falido. Deprimido. Doente. Diabético e com suspeita de câncer no reto. Doença que quase matou meu pai tempo desses. Uma dor desgraçada no cu que lateja e arde o dia inteiro, mas ontem deu uma melhorada e uma mulher vomitou no meu pé e disse que precisava de um filho. Que se eu podia dar um filho pra ela. Eu disse que era estéril. Que a literatura já enchia muito meu saco e que não tinha cabeça e responsabilidade para cuidar de uma criança. Que tinha um casal de cães. O Bakunin e a Anais Nin. Então começou a chover e nos abrigamos embaixo da marquise de uma igreja abandonada e ela não parava de falar. Acendeu um baseado de pasta de cocaína com maconha e perguntou o que era literatura e me chamou de gay. Que se eu fosse homem de verdade treparia com ela ali mesmo. No chão sujo cheirando a baba de mendigo. Lembrei de uma tia evangélica que acha que homem solteiro com mais de trinta anos é bicha ou doente mental. Talvez eu seja doente mental. Quem abandona tudo para fazer literatura é louco. Aí a maluca tirou a blusa. Os mamilos roxos e inchados. Como se fossem chupados todos os dias. Eu disse "não precisa disso, gata. Segura a tua onda. Veste tua blusa." aí ela começou a gritar "você vai me comer! Homem nenhum faz desfeita da minha boceta" aí começou a dar tapas na barriga. "você vai ter que me comer!" aí acendi meu derby e dei uma golada pesada na minha garrafa de conhaque e fui caminhando até uma viatura parar e um soldado perguntar por que não comi a dona. Ele perguntou rindo. O dia clareando e algo dentro de mim dizendo "não tem como abandonar a literatura, cara. Mesmo que você queira. É algo mais forte que tudo." Abro um sorriso e entro na minha rua cheia de urubus revirando lixo.

Diego Moraes, publicado no facebook no dia 23 de outubro às 12:26.