25 de novembro de 2015

19 de novembro de 2015

17 de novembro de 2015

há nele qualquer coisa que não se descarta facilmente, isso é inequívoco. como uma arma.
mas quando a vês, o que é que sentes?, perguntou G., olhando para o interior da vila cuja primeira porta, do lado direito, cheirava a azeite.
és muito inteligente, disse-lhe, gosto tanto disso.
começámos a percorrer a estrada ao lado dos renques de oliveiras, o crepúsculo ameaçava com frio.
ela não gosta de mim, declarei.
gosta sim, respondeu G., com uma certa impaciência, mas com um tom que, por me parecer realista, se tornou inquietante. quis responder-lhe com um não fulminante, que a enchesse de vergonha. mas fiquei em silêncio. subitamente tornou-se claro que o motivo da sua vinda era outro. a atmosfera inclinou-se para um recolhimento quase absoluto. ouvi os animais, os bois, os cavalos, os cães, e, mais longínquo, o som irreversível de uma máquina, um carro que passava a caminho da autoestrada por trás dos montes e das casas. sem qualquer receio disse-lhe que esta noite já não íamos a lado nenhum.


16 de novembro de 2015

The Single Hound

On my volcano grows the grass,—
A meditative spot,
An area for a bird to choose
Would be the general thought.

How red the fire reeks below,
How insecure the sod—
Did I disclose, would populate
With awe my solitude.

Emily Dickinson

13 de novembro de 2015

Ki-nam Soo ocupou o lugar número 62 no autocarro e olhou através da janela para o pequeno bosque que começava do outro lado da praça e se estendia por cerca de cinquenta hectares até às margens do lago Changpae, à beira do qual a cidade de Taedong-san começava, prolongando-se depois até à base da montanha Baekdu Cheonji, onde todo o sinal de vida humana terminava totalmente, e também os cheiros, pois estava coberta de neve todo o ano. depois ajeitou as abas do casaco uma sobre a outra e poisou as mãos sobre a barriga, preparando-se definitivamente para a viagem. ao seu lado no banco viajava a nora e, pousado entre ambos, um saco de pano contendo uma caixa com bulgogi, outra menor com kimchi, uma garrafa de bokbunja, um chocolate e duas cartas, uma delas selada há vinte e três anos, a outra escrita há alguns dias atrás, tudo embrulhado em papel vermelho com uma fita de tule amarela. por cima, cuidadosamente atado com fio de algodão, um ramo de rosas Sharon, a flor imortal, símbolo de quem ultrapassa o sofrimento e enfim, no chão, presa entre os pés da nora, uma melancia com 12 quilos. tinha sido dos primeiros a sentar-se e portanto ouvia agora os outros falar ainda entre si, alto e depressa, enquanto arrumavam malas e procuravam ansiosamente o lugar que lhes havia cabido no último sorteio, o primeiro em cinco anos, pois este grupo de 68 sul-coreanos, do qual Ki-nam Soo fazia parte, integrava-se noutro maior, de 398, pertencentes a 96 famílias ao todo que viajariam dentro de minutos até ao norte da Coreia para reencontrar os 141 familiares que, devido à guerra entre o norte e o sul, não viram durante os últimos sessenta anos, ou mais. na lista de espera para o próximo sorteio, que não se sabe quando se voltará a realizar, ficaram mais de 65.000 sul-coreanos. mas Ki-nam Soo agora esqueceu tudo isso. tem um filho. chama-se Lee Dong-im e tinha 9 meses quando o viu pela última vez, agora tem 66. «está vivo», alegra-se Ki-nam Soo desde que soube que tinha sido selecionado, «estou vivo», alegra-se. a viagem leva três horas e a reunião entre as famílias duas. em apenas três horas, irá rever o rosto desse bebé. em poucas horas será isso, um homem adulto. sabe que irá revê-lo pela primeira e pela última vez pois as hipóteses de um reencontro são inexistentes. Ki-nam Soo e Lee Dong-im encontram-se agora pela primeira e pela última vez. um primeiro encontro que é uma despedida.

10 de novembro de 2015

libertar-se do rancor, concluiu, para deixar de viver no passado. não o ia levar para a cova, isso nem pensar, ficar a remoer para quê. a descoberta declarava-se como uma ocasião de questionar o tempo preciso da epifania, da maravilha ao espanto à surpresa. assim é a perda, a desordem, o exílio imutável. não passava de um fugitivo e, de maneira estranha, um filho repugnante da morte. dia após dia, o corpo era a sua única estratégia de retornar à infância, que abandonámos e onde igualmente vivemos.

6 de novembro de 2015

Ouvrez quelques cadavres: vous verrez aussitôt disparaître l’obscurité que la seule observation n’avait pu dissiper. La nuit vivante se dissipe à la clarté de la mort.

Michel Foucault, Naissance de la clinique.

31 de outubro de 2015

Não quero negativar a vibe de ninguém. Só ando desacreditado da vida e sem a mínima vontade de interagir com o mundo. Tem dias que acordo pensando em tomar 4 cartelas de remédios ou amarrar uma corda no pescoço e foda-se. Estou falido. Deprimido. Doente. Diabético e com suspeita de câncer no reto. Doença que quase matou meu pai tempo desses. Uma dor desgraçada no cu que lateja e arde o dia inteiro, mas ontem deu uma melhorada e uma mulher vomitou no meu pé e disse que precisava de um filho. Que se eu podia dar um filho pra ela. Eu disse que era estéril. Que a literatura já enchia muito meu saco e que não tinha cabeça e responsabilidade para cuidar de uma criança. Que tinha um casal de cães. O Bakunin e a Anais Nin. Então começou a chover e nos abrigamos embaixo da marquise de uma igreja abandonada e ela não parava de falar. Acendeu um baseado de pasta de cocaína com maconha e perguntou o que era literatura e me chamou de gay. Que se eu fosse homem de verdade treparia com ela ali mesmo. No chão sujo cheirando a baba de mendigo. Lembrei de uma tia evangélica que acha que homem solteiro com mais de trinta anos é bicha ou doente mental. Talvez eu seja doente mental. Quem abandona tudo para fazer literatura é louco. Aí a maluca tirou a blusa. Os mamilos roxos e inchados. Como se fossem chupados todos os dias. Eu disse "não precisa disso, gata. Segura a tua onda. Veste tua blusa." aí ela começou a gritar "você vai me comer! Homem nenhum faz desfeita da minha boceta" aí começou a dar tapas na barriga. "você vai ter que me comer!" aí acendi meu derby e dei uma golada pesada na minha garrafa de conhaque e fui caminhando até uma viatura parar e um soldado perguntar por que não comi a dona. Ele perguntou rindo. O dia clareando e algo dentro de mim dizendo "não tem como abandonar a literatura, cara. Mesmo que você queira. É algo mais forte que tudo." Abro um sorriso e entro na minha rua cheia de urubus revirando lixo.

Diego Moraes, publicado no facebook no dia 23 de outubro às 12:26.

29 de outubro de 2015

O crioulo é considerado a língua nacional e é o meio de comunicação entre os diferentes grupos étnicos. O português, declarado língua nacional oficial, é pouco falado e o seu uso encontra-se limitado aos meios oficiais e a um pequeno número de guineenses. O analfabetismo entre os indivíduos com 15 anos e mais, era de 49,8% em 2009, demonstrando assim que metade da população adulta não sabe ler nem escrever.

27 de outubro de 2015

o tratamento não tinha conseguido interromper o rápido processo de morte e o moribundo, embora lúcido, já só os olhos piscava de vez em quando. no momento em que se dirigiu para o hospital, tinha decidido abandonar-me, pelo menos era essa a minha impressão enquanto o contemplava agora e percebia que a felicidade tinha uma nitidez assustadora. eram três horas da madrugada de uma noite estrelada muito fria e eu não seria capaz de evitar a catástrofe mas em vez do fim veio a salvação. não serviu de nada.

24 de outubro de 2015

Daqui até à Póvoa de Varzim a povoação mais importante de pescadores é a Lagarteira (Âncora), na segunda reentrância da costa. Deito‑me a pé pela estrada, através do lindo pinheiral do Estado, que, de cismático, me lembra António Nobre, e fico perdido de sonho no Moledo. Em 13 de Agosto de manhã há uma ligeira névoa, um nada, um bafo. São nove horas. O azul entontece. Perco a linha da paisagem, o verde‑escuro do pinheiral que vai até ao mar, e tudo isto se me afigura uma larga concha azul, formada pelo mar azul e pelo céu azul, com uma borda de areal onde alguns velhos moinhos em fila batem as asas para meu encanto. O forte da Senhora da Ínsua fica num extremo, com o monte de Santa Tecla, que saiu agora do mar a escorrer, e no outro extremo da curva, onde a amplidão do azul é infinita, a penedia a desfazer‑se em espuma… Não posso. Por mais que queira não posso arredar‑me daqui, com a cabeça estonteada. Fico. E só ao fim da tarde é que consigo chegar a Âncora, com dois jactos de azul metidos pelos olhos dentro. Logo hoje, até muito tarde, não se apaga do céu um doirado de iluminura, que se prolonga até noite velha e morre com aflição…

Raul Brandão, Os Pescadores.

22 de outubro de 2015

Eu deito fora a porcaria sentimental. Esta é a minha tarefa. Na literatura, eu sou a senhora da limpeza, a senhora com o caixote do lixo.

Elfriede Jelinek (2004).

21 de outubro de 2015

19 de outubro de 2015

há uma ave no chão
não se move mas está viva
não se vê mas tem ferida

aproximo-me e meticulosamente
quebro-lhe a asa
antes de continuar o meu caminho
o instante em que a presa é imobilizada é o único que é puro e, por isso, o caçador nunca engole a presa mal a apanha. nela, a carne amolece e abre-se, nele o ímpeto recebe a frágua e leva o rumor. os demónios são expulsos, os inimigos vencidos, não há zelo nem escrúpulo nem privilégio nem honra mas sim silêncio. depois, antes de aplicar o último golpe, quando a presa quebra, também o caçador se imobiliza. aí, e apenas aí, a caça é inalienável.

18 de outubro de 2015

passei por um casal de mendigos a foder na entrada de um prédio. estavam tapados com um saco cama, ela praticamente imóvel, parecia morta, tinha a mão de fora da coberta, suja. ele estava todo lá dentro e os movimentos eram visíveis. passei numa direção e vi isto, voltei a passar na direção oposta e ele já lá não estava. ela continuava imóvel e tapada, mas tinha mudado de posição, deitou-se de barriga para baixo. não dava para perceber se ele iria voltar, o lugar que ocupava anteriormente estava agora a descoberto, mas também nunca dá, não é?

17 de outubro de 2015

15 de outubro de 2015

para o A., que me dá bons conselhos.

"ouve", disse-me o rapaz, "silêncio". eu: "não". como se de propósito, o operário exclamou "é meu filho!". pela primeira vez tive saudades de Marrocos. o meu pai, sozinho, com os cotovelos apoiados na mesa e o queixo nas mãos. "e depois porra?", perguntei. um amigo veio buscá-lo. veio dizer-me "você tem de tirar dali o carro". percebi que o corte na mão não era profundo e mandei-o parar. "que catástrofe". "vá. silêncio.". chovia copiosamente. olhei para ela, introspetivo. ela endireitou o corpo e disse a sorrir, sem desviar os olhos do livro "alegria, alegria".

13 de outubro de 2015

deixando para trás a coluna de sol, os grilos e os curiosos, mal dado um passo para dentro da sombra fresca, o rosto dela surgiu com tanta veemência que nesse mesmo instante comparou a lembrança à de um morto, de quem o nojo fosse intolerável. o pensamento a seguir, enquanto seguia pela nave, foi que, justamente, ela não estava morta. os convidados sorriam ou choravam, uma felicidade tremenda, ignota, tinha-se apoderado da maior parte. no altar, o noivo também sorria, porém com uma felicidade frágil, genuína, que, contudo, desprezou. enquanto caminhava pela nave, cada vez mais lentamente, A. lembrou-se, com cuidado extremo, de todos os detalhes do seu corpo. da voz, do peso da mão, dos pelos da púbis, do tom da pele, da curva do pescoço, do cheiro da transpiração. quando chegou ao altar desejava ardentemente revê-la. imaginou-se a refazer o caminho de volta para a praça, atravessá-la, conduzir o carro durante uma hora e meia, procurar a casa, encontrar a casa, bater. mas não conseguia imaginá-la a surgir do lado de lá da porta. sem sucesso, ao longo de toda a cerimónia procurou imaginar esse rosto aparecer e por isso, quando entrou no carro que os levaria ao jardim, sentia-se indisfarçavelmente esgotada e abatida. embora com repulsa, pousou a cabeça no ombro do marido durante o percurso. não sabia no entanto a quem se destinava exatamente esta repulsa, se ao homem que com todo o afeto e compreensão acariciava agora o seu joelho, se a si própria, indistintamente burladora e burlada. começou a chorar, não para libertar a tensão mas sim a tristeza. indiferente às interrogações que choviam, escudou-se atrás de um bloco de silêncio e continuou a ver a escuridão atrás da porta aberta, de onde nenhum rosto assomava.