31 de agosto de 2015

o sol acabava de desaparecer deixando no céu um azul assombroso, também ele prestes a ofuscar-se. prostrada sobre a terra, a rapariga pensava que desde pequena todos apontavam a sua inteligência e o seu bom coração. era portanto lógico que nada tivesse tido tanto sentido até aí como encontrar-se entre os animais, à superfície da terra. a pessoa justa despreza a insensatez da violência, envergonha-se da fortuna desonesta, é insensata e ingénua no seu profundo desprezo pela humanidade. é apenas uma imbecil, que não conhece nada. mas quando viu que, debaixo das amoreiras, também a terra a desprezava, levantou-se lentamente, sacudiu o vestido, e prosseguiu silenciosamente pela estrada, ao longo do canavial. nisso era experiente. gritos de alegria ecoavam atrás dos muros da cidade, uma grande fogueira ardia longínqua na planície. Z. encobriu o rosto, desencorajada. a fadiga privava-a de perigo e de remorsos.

21 de agosto de 2015

Num momento desses que nos deve salvar a vida temos de ser simplesmente contra tudo ou já não ser, e eu tive a força de ser contra tudo e fui contra tudo ao serviço de emprego na Gaswerkgasse.

Thomas Bernhard, A Cave in Autobiografia.
Pois efectivamente tudo em mim está relacionado com esta cidade e esta paisagem enquanto minha origem.

Thomas Bernhard, A Causa in Autobiografia.
Eu sempre gostei de ir aos cemitérios, isto tinha eu da minha avó materna, que era uma apaixonada visitante de cemitérios e sobretudo de capelas mortuárias e câmaras-ardentes, e ainda quando eu era muito pequeno ela me levava muitas vezes aos cemitérios, para me mostrar os mortos, quaisquer que eles fossem, sem ter com eles nenhum parentesco, mas sempre mortos que estavam amortalhados nos cemitérios, ela sempre se sentira fascinada pelos mortos, pelos mortos colocados no caixão, e procurou sempre transmitir-me essa sua fascinação enquanto paixão, mas ela, ao levantar-me para eu ver os mortos no caixão, só o que conseguira fora sempre encher-me de medo, eu ainda hoje vejo muitas vezes como ela me levanta para eu ver os mortos no caixão e me segura assim todo o tempo que ela consegue aguentar, repetindo o seu estás a ver, estás a ver, estás a ver e assim me segurando até eu começar a chorar,  depois punha-me no chão e ficava ela própria ainda bastante tempo a olhar o morto, até sairmos por fim da capela mortuária.

Thomas Bernhard, A Causa in Autobiografia.

7 de agosto de 2015

A impossibilidade de um relacionamento tranquilo teve ainda uma outra consequência muito natural, de facto: desaprendi de falar. De resto também não teria sido grande orador, mas teria dominado a linguagem humana normal e fluente. Tu, porém, proibiste-me a palavra desde cedo, a tua ameaça «Nem te atrevas a ripostar!» e a mão levantada ainda hoje me acompanham desde essa altura. Diante de ti – desde que se trate das tuas coisas, és um orador exímio – fiquei com um modo de falar hesitante, gaguejante, mas mesmo isso era demais para ti e acabei por me calar, primeiro talvez por obstinação, depois porque diante de ti não conseguia nem pensar nem falar. E dado que eras tu o meu verdadeiro educador, isso continuou a fazer-se sentir por toda a minha vida.

Franz Kafka, Carta ao Pai.

14 de julho de 2015

13 de julho de 2015

Confesso enxuto que queria me afogar pra saber como é ser mar.

Valentim Pirat

8 de julho de 2015

Seremos sempre tentados a procurar para a forma um outro sentido que não o dela própria, e a confundir a noção de forma com a de imagem, que implica a representação de um objeto, e sobretudo com a de signo.

Henri Focillon, A vida das formas.

7 de julho de 2015

Aminatou está grávida de nove meses. Deseja um filho forte e saudável mas a timidez impede-a de fazer perguntas aos médicos. A sua sogra Adja, que vive com ela e com o marido, Bintou, decidiu que durante os três primeiros dias após o parto Aminatou dará leite de cabra ao bebé, por considerar que o primeiro leite materno é impuro. Adja pensa que a origem do leite materno está nas relações sexuais mantidas antes da conceção. Persistentemente, desde que foi escolhida para ajudar ao parto no domicílio, Mariam procura argumentos para explicar a Adja que amamentar é um ato natural e constitui a melhor forma de alimentar e proteger o bebé, que o leite materno se adapta às necessidades da criança e contém tudo o que precisa. Mas a maternidade é uma condição férrea e Adja encontra no seu filho, um homem alto e robusto, todos os argumentos para prescindir de qualquer justificação, ignorar os conselhos e impor o preceito à nora.
No dia em que Kiluanji nasce, Bintou coloca o recém-nascido sobre uma napa, entre as pernas da mãe. Mariam corta o cordão. Cega de cansaço e de dores, ignorando a decisão de Adja, Aminatou oferece o peito ao filho mas o recém-nascido não consegue mamar. O leite sai, é um líquido espesso e amarelo, primeiro apenas umas gotas, depois um fio que escorre sobre a pele, mas Kiluanji não bebe. Bintou, que vê de soslaio a mulher desobedecer à mãe, mantém-se de costas para ela e, fingindo não ver, sai pouco depois do quarto, levando a mãe consigo para anunciar o sucesso do nascimento à comunidade. Uma pequena mancha de humidade depositou-se no chão junto à perna de Aminatou, que por momentos desvia a atenção do seu bebé. Repara que, com o calor, o restolhar das folhas das árvores se tornou raro. A terra está seca, morbidamente seca. Não há cheiros, o ar possui a qualidade do isolamento. Extenuante, até a noite tem luz. É o tempo do encontro dos homens com si mesmos e, como todo o encontro com si mesmo é pejado de pudor e desonra, Bintou evitou olhar para ela. Mas disso, por não pertencer ao intelecto, Aminatou nunca falará. Aminatou olha para Kiluanji cujas pálpebras se abrem e fecham delicadamente e assiste à revelação daquilo que o faz ser quem é, aquilo que nele é inesquecível e que todos verão ainda no dia em que morrer. Subitamente, o queixo toca na mama e o lábio inferior volta-se para o exterior, deixando a aérola mais visível acima do que abaixo da boca. Aminatou separa-se finalmente do mundo e apazigua-se. Nunca regressará.

6 de julho de 2015

SEGREDOS PELO CAMINHO 

A luz do dia bateu no rosto de alguém que dormia. 
E esse alguém teve um sonho com mais vivacidade, 
ainda que sem acordar. 

As trevas bateram na cara de alguém que ia a andar entre a multidão, 
sob os raios impacientes e fortes do sol. 
De repente escureceu, como quando cai uma bátega. 

Eu encontrava-me num quarto com espaço para todos os instantes
a sala de um museu de borboletas. Ali, porém, o sol brilhava tão intensamente como antes. 
Os seus pincéis impacientes davam cor ao mundo. 

Tomas Tranströmer