7 de maio de 2015

às vezes acho que os portugueses são uns ingleses de merda e dou por mim a pensar que escrevo contra isso.

6 de maio de 2015

Я пью за разоренный дом,
За злую жизнь мою,
За одиночество вдвоем,
И за тебя я пью,—
За ложь меня предавших губ,
За мертвый холод глаз,
За то, что мир жесток и груб,
За то, что Бог не спас.

Eu bebo ao lar despedaçado,
À minha vida cruel,
À solidão a dois,
E a você eu bebo, –
Ao lábio que me traiu,
Ao frio mortal dos olhos,
Ao mundo, duro e cruel,
A Deus, que não salva.

Anna Akhmatova, Последний тост [Último brinde], 1934.
NOTAS

Neste livrinho de notas pode ler-se a seguinte entrada, s.d.: "Foda-se…!"
Quando uma criatura está em evidente regência de si não escreve diários, tratando-se estes da nula posição no que de diário têm os dias vividos plenamente. Decidi meter-me neles no princípio do ano, pensando, aqui vou eu poder ser ligeira, imaginar-me qualidades, seguir-me em forma de obra una e orgânica anotar o que de importante se passa nos meus dias de optimista invisual. Tonitroante na tamanha presença de mim vou tornando a cidade no meu coração porque parece que me despeço todos os dias. Se fosse médica diria: "reduza a pó tudo o que faça de si hospedaria de doença." Mas não sou. Escrevo umas merdas para aguentar muita luz, muita gente, muita morte. Dos ditos diários, há quem escreva coisas giras do género: "não perturbar o fumo do cigarro" — isto é para ser lido daqui a cinquenta anos e ainda ser cool, organizar excursões à Azinhaga da torre do Fato onde morou poeta que não perturbava. No meu diários há poucas linhas. Há umas palmas e vivas a encontros com amigos, um arroz de bacalhau que eu e a Rosalina fizemos uma vez numa noite em que um bom bocado de fuet caía ao chão como uma princesa rolando do pecado original, virada para baixo. Estava tudo delicioso, apareceu Deus em todas as suas faces. Há uma data misteriosa que diz só "amigos: Travessa do Corpo Santo 20:00" — sublinhado. Numa outra página uma nota inútil pretendendo-se singular: "Porque Camões é o hipómano da consciência moderna em crise", devo ter tentado trocar este binómio de Newton por uma Vénus de Milo de beber. À parte faltar a página do dia 14 de fevereiro, arranquei-a e guardei-a na gaveta das toalhas lavadas; o resto das páginas tem o efeito de florir novos adeptos pensamentos, ou seja, NADA. Ora, estando eu neste desemprego de vida entre o tudo e o nada desde que fiquei sem bolsa de doutoramento, estando eu a terminar um — para que o diabo me encontre mais rapidamente que aos outros e me convide para o bonde capeta onde se é realmente feliz com uma mol de água e uma mol de cianeto, é para isso que servem os doutoramentos —, e estando eu à procura de trabalho, um trabalhinho normal de pessoa normal que sabe ler e escrever e leu inclusivamente o livro das anedotas do Herman José em gaiata—, enfim, estando eu inevitavelmente acompanhada nesse tempo demais, com um currículo académico extensamente inútil, reparo como se pode fazer silêncio todos os dias cada vez mais em extensão e cada vez menos com peso. Depois de vez em quando passeamo-nos pelas estantes e encontramos um caderninho que entre as joínhas diz:
Planos para um futuro sem emprego:
a) Confirmar o erro psicológico ao Sr. Cabral de que já não preciso de inspiração; preciso é de balas.
b) Estrangeirar-me, mudar de rua, mudar de cidade, mudar de país, mudar de órgãos, mudar de religião, mudar de 'ser humilhante ter andado a estudar para ser uma desempregada no meu país' para: 'ser menos humilhante ter andado a estudar para ser desempregada mas não no meu país'.
Posto isto, amigos, é singular que não nos interesse a doença, senão aquela parte da teoria com que nos comprometemos com todas as gramáticas possíveis. Compreendido isto até à inconsciência, sentido isto ao fundo do corpo, estou com quem despreze os restos. Estou um bocadinho farta, sim. Já nos encontramos.

Raquel Nobre Guerra, publicado no facebook no dia 5 de maio às 19:14 com uma imagem.
"E sumo-me."

5 de maio de 2015

só gosto das manhãs. pela hora do pequeno almoço, é a pureza da luz que raia, por toda a parte. faço sempre duas torradas e bebo uma chávena grande de café fraco e, enquanto as torradas fazem, vou à casa de banho por creme na cara, ao espelho. há uma serena ordem a presidir à rotina, tudo se passa como se a manhã fosse eterna. e eu não me apresso. por vezes ligo o rádio para ouvir música clássica e desligo ou mudo de estação quando aparecem pessoas a falar. por não serem vorazes, as manhãs não exigem que sejamos engenhosos, como acontece com as tardes, sobretudo com o meio da tarde, onde se encontra sempre um poço seco à beira do qual ouvimos um coro de vozes, frias como facas, que nos tentam a lá cair. manhãs de nevoeiro são comoventes, como a nudez ou a morte e nenhuma outra coisa como uma manhã clara se encontra além da banalidade. a pura razão que as planifica, a sua mecânica lenta, sem milagre, faz delas universos plenamente passivos, onde o turbilhão impudicamente se levanta e ataca, como um animal excitado.

4 de maio de 2015

Guarda o teu poema no fundo de uma gaveta.
Que as traças o devorem sem deixar
o mais débil vestígio de tua humanidade.
O que pensas do amor, da vida e da morte
não interessa a ninguém.
Todos estão demasiadamente distraídos
e preocupados com as precárias
liberdades do corpo e as metamorfoses da alma.

Digam o que disserem os graves e os cínicos
os bêbados e os bastardos
os que te cumprimentam todas as manhãs
com mentirosa cordialidade...
— Guarda o teu poema no fundo de uma gaveta.

Francisco Carvalho

3 de maio de 2015

Pouco a pouco, anunciada por um caos de muralhas derrubadas, esgotos a descoberto, pardieiros, fábricas mal acabadas de construir e já em desuso - destelhadas - com os esqueletos de ferro contorcidos e contra a luz cada vez mais intensa e encadeante - restos de pequenos burgos medievais e manchados como por uma devorada humidade tropical - apareceu uma cidade interminável. Ao fundo brilhava o mar. O ar estava carregado de um fedor indefinível: merda, gases, esgotos, mas também terra adubada de hortas, limões podres, enxofre e algo perdido, sufocante, que não era senão a poeira da pobreza.

Pier Paolo Pasolini, Petróleo.

2 de maio de 2015

subitamente sinto-me vazia, como quando chega a felicidade. debaixo de um sol de verão que arde num céu encoberto, os catos secam na varanda, como quando eu não estava. quando os sinos desatam a repicar, reparo em pessoas que passeiam o cão no largo, e que também o largo está vazio. está tudo vazio, pois o olhar delas é absorto, tão absorto que creio nem ouvirem os sinos ou se apercebem do vento forte que sopra no largo em todas as direções. não tenho nada. o largo vazio sou eu, sem temor e sem júbilo. sou o espaço antes ocupado por um enigma, que desapareceu depois de, com sede, ter vomitado no deserto. da indissolúvel quimera dos apetites, onde, por desconhecer a resposta a perguntas sem solução, se oculta a monótona matiz da cobardia,

me ergo, limpa.

1 de maio de 2015

Há na ironia uma pretensão insuportável: a de pertencer a uma raça superior, e de ser a propriedade dos mestres (um texto famoso de Renan di-lo sem ironia, dado que a ironia acaba depressa quando fala de si própria). O humor reclama-se, pelo contrário, de uma minoria, de um devir-minoritário (...).

Gilles Deleuze, Dialogues, 1977.
When I cannot see words curling like rings of smoke round me I am in darkness—I am nothing.

Virginia Woolf, The Waves.