29 de março de 2015

E foi.
E onde devia haver beijo há uma falha.
É o único sinal visível do acontecimento esse. A montanha arrepanhada ao contrário.
A falha não é um erro, não é uma falha no sistema, não há sistema, não é um acto falhado, é toda acto, falha que é a abertura de onde.
É a abertura depois da derrocada, é o rewind da avalanche.
Não: é o fim da avalanche quando do som só há silêncio e a falha é a maior parte do som. 


Sónia Baptista, a falha de onde a luz (com Francisco Goulão).

28 de março de 2015

O silêncio tornou-se a sua língua materna.

Oliver Goldsmith
nunca mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo —
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-las numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio


Herberto Helder, Servidões, 2013.
Bilhete Postal Negro

I.
Calendário repleto de compromissos, futuro incerto.
O rádio trauteia uma canção popular sem nacionalidade.
Cai neve no mar totalmente gelado. Vultos acotovelam-se no cais.

II.
Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta
e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida,
e a vida continua. O fato, porém, esse é cosido em silêncio.

Tomas Tranströmer, 50 Poemas, 2012.
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega

Herberto Helder

21 de março de 2015

Moi-même je dois en périr,
Le cœur me fait si mal,
Je voudrais mourir de douleur
En voyant ma propre image


Heinrich Heine, A Lorelei, 1823.
Et ajoutes: finie, l’harmonie sonore
Tu as aimé Mozart en pure perte
Vient maintenant la surdité des araignées
Cette chute dépasse nos forces

Nadezhda Mandelstam
tenho saudades de ruas onde ecoa apenas o som dos nossos próprios passos. é talvez — ou sem dúvida —, ter saudades de um certo tipo de solidão. a solidão do viajante, ou melhor, do wanderer, daquele cuja vida não se dissocia da deriva e do seu profundo silêncio, que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, da treva onde toda a intimidade com o mundo se aloja. em suma, tenho saudades de certa solidão infantil, onde todas as fantasias se gozam e que, ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas tem nele lugar, entre todas as coisas.
Und ich wand're sonder Massen. [E eu caminho sem medida] (Schubert, Die Winterreise). 

19 de março de 2015

eu já tinha mais de vinte anos quando descobri que há pessoas que nunca caminham pelas ruas. acordam nas suas casas aquecidas, limpas, arrumadas, tomam banho, cobrem o corpo de vestes, talvez escolhidas na véspera, saem, por vezes de óculos escuros, descem de elevador à garagem, atravessam as cidades dentro da embarcação que as silencia e dentro da qual se ouve música, estacionam na garagem das suas empresas, sobem até ao escritório pelo elevador e aí passam o dia. talvez saiam à hora de almoço à rua, onde há lojas e restaurantes que têm mesas com placas em cima a dizer «reservado». mas seja como for, não caminham pelas ruas, isto é, nunca levam com a vida na cara. são pessoas que, por exemplo, sequer sabem usar uma passadeira, pois raramente as atravessam. e isto sei-o porque os vi, essas mulheres e esses homens, sentada dentro do meu carro, parado na passadeira. debaixo dos óculos escuros, o porte da sua cabeça é altivo, mas o movimento dos seus pés e joelhos suporta toda a desorientação. vi-os nas suas casas, 35º graus no interior, -9º lá fora. vi os seus armários, percorri o caminho das casas até aos carros guardados nas garagens e vi a sola dos sapatos gastos sobre carpetes e tapetes de cimento liso. vi-os fazer listas de compras, falar ao telefone, dançar, organizar jantares, conversar, pensar, observar. se digo que tinha mais de vinte anos quando o descobri não é por acaso nem para fazer recurso de qualquer figura estilística. descobrir uma coisa destas aos vinte anos não é o mesmo que descobri-lo aos quatro ou aos quinze. com essa idade, para mim, que obtinha grande prazer (e uso a palavra prazer num sentido lato, porque o prazer também jorra do improvável — e que justo é dizer dele ser improvável —, como o luto e a derisão) justamente em caminhar pela rua, conceber a ideia foi difícil, à semelhança de tentar quebrar um enigma durante muito tempo. para o resolver, tive de perceber que também o impossível é possível, que também o impensável tem atribuição, que todo o contrário a todo o contrário tem o seu lugar no mundo, tal como eu tenho. com cinco ou seis anos, a perceção disto ter-me-ia formado, no modo do desastre ou em adequatio. aos vinte anos apenas revelou a semente de uma melancolia precoce, de um mistério, que muito tem crescido e que a cada transformação me continua a surpreender.

18 de março de 2015

Un récit ? Non, pas de récit, plus jamais.

Maurice Blanchot, La Folie du Jour