27 de fevereiro de 2015

coisas sobre o fogo:
  • Fénix
  • a Sarça Ardente, a acácia Seneh que, ateada de fogo, não se consumia
  • Joana d'Arc
  • Leonard Cohen, Who by fire
  • Heraclito, fragmento 16
  • elemento cósmico a que corresponde o calar
  • a Serra a arder
  • uma mesa braseira
A nossa entrada [na CEE] vai provocar gravíssimos retrocessos no país, a Europa não é solidária com ninguém, explorar-nos-á miseravelmente como grande agiota que nunca deixou de ser. A sua vocação é ser colonialista. A sua influência (dos retornados) na sociedade portuguesa não vai sentir-se apenas agora, embora seja imensa. Vai dar-se sobretudo quando os seus filhos, hoje crianças, crescerem e tomarem o poder. Essa será uma geração bem preparada e determinada, sobretudo muito realista devido ao trauma da descolonização, que não compreendeu nem aceitou, nem esqueceu. Os genes de África estão nela para sempre, dando-lhe visões do país diferentes das nossas. Mais largas mas menos profundas. Isso levará os que desempenharem cargos de responsabilidade a cair na tentação de querer modificar-nos, por pulsões inconscientes de, sei lá, talvez vingança!
Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente. Mais de oitenta por cento do que fazemos não serve para nada. E ainda querem que trabalhemos mais. Para quê? Além disso, a produtividade hoje não depende já do esforço humano, mas da sofisticação tecnológica. Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a por gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão.
Há a cultura, a fé, o amor, a solidariedade. Que será, porém, de Portugal quando deixar de ter dirigentes que acreditem nestes valores? As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo. A Comunidade Europeia vai ser um logro. O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida. Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres. A indiferença que se observa ante, por exemplo, o desmoronar das cidades e o incêndio das florestas é uma antecipação disso, de outras derrocadas a vir.


Natália Correia
sem dúvida, respondeu ele, a olhar para o outro lado da estrada, apesar do sinal estar vermelho para passar. ela aperta-lhe a mão suada que ele quer deslaçar.

24 de fevereiro de 2015

Only this everlasting waiting, eternal helplessness.

Franz Kafka, Diário 1910-1923.

23 de fevereiro de 2015

ambição do escritor em representar a massa, em representar aquilo que representa. e através do contingente, deleite mórbido em demonstrar, irrefutavelmente, a insignificância do significante. procura da beleza, branda, invulgar, simultaneamente abundante e vazia.
várias coisas denunciavam o mau humor do meu pai quando ele entrava em casa: o arfar da sua respiração e a forma assustadora como retinha a fala, cerrando os dentes e os lábios, como que para atrasar a libertação da cólera. mas também o grau de violência com que fechava a porta de casa e a cadência dos seus passos: quanto mais depressa caminhasse e mais pesados fossem os passos, mais negra era a carga que iria despejar. a minha mãe não precisava de fazer muito para nos alertar, simplesmente olhava para nós, um olhar que dizia «cuidado». nós sabíamos o que tínhamos de fazer, ou melhor, o que não podíamos fazer. barulho. nesses dias, assim que ele entrava em casa, eu e a minha irmã interrompíamos a brincadeira ou os trabalhos de casa, íamos para o quarto e tentávamos respirar silenciosamente. no entanto, para funcionar, havia que fingir que isso — o silêncio, o não sair de um canto, a quietude —, correspondia efetivamente a um ambiente normal numa casa com duas crianças pequenas. e isso implicava o confronto. a parte do beijo era mais fácil, era rápido. a parte do jantar e da noite eram as mais difíceis. o medo imperava. sabíamos que nem toda a quietude do mundo seria capaz de evitar os gritos, a fúria. por inexplicáveis, incompreensíveis e injustificáveis que fossem.
num desses dias a minha mãe tinha o jantar pronto. tinha feito açorda, prato que fazia poucas vezes por ser o único prato que eu não comia. para me dar um mimo, nos dias em que fazia açorda ela fazia sempre ovos mexidos com batatas fritas só para mim, que era, ao contrário, um dos meus pratos preferidos, e desta maneira eu não ficava com tanta pena por não estar a comer o mesmo que toda a gente comia. eu era esta criança, que reunia toda a família ao domingo para beber chá e comer bolinhos, por achar importante que estivéssemos juntos. para os convencer dizia-lhes que, se alguém faltasse, isso significava que estávamos ameaçados, que o amor estava ameaçado. todos tinham de ir ao «chá com todos» e todos tinham de beber chá e bolinhos. os ovos mexidos no dia da açorda era um costume já antigo. não é que eu fosse boa boca, não era, mas de alguma forma a minha mãe percebeu que, aquele prato, não conseguia mesmo obrigar-me a comer, e por isso, a partir de determinado momento, deixou de insistir. sentámo-nos à mesa, o meu pai pegou no tacho de barro com a açorda assim que a minha mãe o pousou ao centro e enquanto se servia a minha mãe foi acabar os ovos para me por no prato. o meu prato era branco com flores azuis. o cheiro da açorda era nauseabundo.
começámos a comer, eu deliciada com os meus ovos e batatas fritas, que nesse dia estavam perfeitos.
uma garfada depois, o meu pai pergunta: «mas porque é que ela não está a comer açorda?». congelei. olhei para ele, olhei para a minha mãe, olhei para a minha irmã, não disse nada. nem percebi porque fazia a pergunta, visto que não era uma novidade eu não comer açorda. não percebi se era suposto eu explicar nem sabia como é que havia de explicar uma coisa que estava mais do que explicada. fiquei atónita, mirrei de medo, a minha mãe respondeu: «ela não gosta C.». trocaram-se mais duas ou três frases e de súbito o meu pai levanta-se atirando com a cadeira para trás e dirige-se a mim como um gigante. enche um prato de açorda, senta-se à minha frente, afasta o prato dos ovos e diz-me «come». respondi que não conseguia. pega no prato e numa colher, pede-me para abrir a boca, respondo «não consigo». levanta-se, aperta-me as bochechas com uma mão, a colher na outra que empurra para a boca, pousa o prato, fecha-me a boca com as mãos e aperta-me as narinas gritando «engole». enquanto isto sucedia, a minha irmã e a minha mãe estavam atrás dele, observavam e pediam o mais gentilmente possível que não me obrigasse, mas sem se aproximarem. senti a colherada de açorda, viscosa e repugnante, descer pela garganta. as lágrimas começaram a chegar de enxurrada, como se o corpo estivesse completamente aberto. e ele viu, ficou espantado e sorriu ligeiramente, como se também se orgulhasse com o que ele considerava ser uma rebeldia e que na verdade, todos o sabíamos, não era. nesse momento fugi para o quarto o mais rápido que pude, encostei-me a um canto da cama, na penumbra e calada, rezando para que aquilo tivesse acabado ali. foi quando o ouvi pegar na colher e no prato. e depois os passos pelo corredor, cada vez mais fortes. a minha mãe e irmã seguiram-no até à porta do quarto. a luz acendeu-se e, usando o mesmo método, repetia que «havia de comer aquele prato até ao fim». bastou a ameaça em receber mais uma daquelas colheres na boca, vomitei para cima dele. um vómito-arma, dirigido, para matar. o chão, os pés e as pernas ficaram sujos, ele olhou-os durante uns segundos e depois, provavelmente sem saber o que fazer à fúria, saiu de casa sem dizer palavra.
I am constantly trying to communicate something incommunicable, to explain something inexplicable, to tell about something I only feel in my bones and which can only be experienced in those bones.

Franz Kafka, carta a Milena Jesenska.

22 de fevereiro de 2015

Words and images run riot in my head, pursuing, flying, clashing, merging, endlessly. But beyond this tumult there is a great calm, and a great indifference, never really to be troubled by anything again.

Samuel Beckett, Malone Dies.
sentava-me agora a uma secretária com o meu computador em frente, começava a escrever sobre os meus pais e não saía de lá enquanto não tivesse terminado. comia quando me lembrasse da fome, deitava-me numa cama ou num colchão atrás da secretária para recuperar do sono, saía para caminhar quando alguma coisa me estivesse a bloquear para logo me arrepender e ter de voltar a correr para o computador, eu que odeio correr. o resultado, seria pouco ou seria muito? meia, uma página? cinco, cinquenta, quinhentas páginas? de quanto tempo precisava? de uma tarde, de um mês? um ano, dez? o que tenho para dizer sobre eles? agora sei, neste preciso momento sei, agora começava. agora a indiferença é irrisória. começava pelo fim.

21 de fevereiro de 2015

ora portanto: ando a ler ao meu sobrinho mais velho uma BD que reúne várias histórias de super heróis. hoje chegámos a uma onde aparece pela primeira vez a Mulher Maravilha. ela está num planeta qualquer cheio de gelo e aparece o Batman e o Robin. trocam umas piadas e entretanto ela diz: «bom, venham para dentro antes que gelem.», ao que o Robin diz entredentes para o Batman: «se continuares com essas roupas, vai ser difícil.» e o Batman retorque: «pensamentos puros Robin, mantém os pensamentos puros...».
neste ponto da história, ouvindo o silêncio do meu sobrinho, decidi parar e perguntei-lhe eu «a mulher maravilha é gira?», ao que o meu sobrinho respondeu «hum hum!» acompanhando a interjeição com um aceno de cabeça afirmativo. para minha surpresa, eis que continua (e aqui poderão efetivamente constatar que sim, ele sabe falar): «e aqui há outra! queres veres? (e começa a folhear as páginas, à procura de qualquer coisa no final do livro). eu já vi, está aqui. é a super girl.» decido ajudar. encontro uns desenhos de uma miúda de cabelo comprido loiro atado num rabo de cavalo, mini saia e copa 100b a voar. e pergunto: «gostas desta?» ele diz que sim. e novamente continua: «ela é que é a super menina. mesmo.» eu, que sou macaca e desconheço o que sejam os pensamentos puros de que o Batman estaria a falar, digo-lhe: «que giro, é loira como a mamã não é?». ele sorri. prometi ler mais amanhã e vim embora.

agora, alguém me diga que não estamos já neste ponto se faz favor.