12 de fevereiro de 2015

Um pintor deveria iniciar sempre uma tela com um banho de preto, porque todas as coisas na natureza são negras, exceto quando expostas à luz.

Leonardo da Vinci

9 de fevereiro de 2015

Como pode alguém esconder-se diante daquilo que não tem ocaso?

Como poderia alguém manter-se encoberto face ao que nunca se deita?

Quem poderá esconder-se do fogo que não dorme?


Heraclito, fragmento 16.

8 de fevereiro de 2015

Na Bíblia, o caçador por excelência é o gigante Nemrod, o mesmo a quem a tradição atribui o projeto da torre de Babel, cujo cimo deveria tocar o céu. O autor do Gênesis o define “robusto caçador diante de Deus” (10.9) (e ainda “contra Deus”, segundo a versão latina mais antiga, chamada Vetus Latina [Itala]), e esta sua qualidade venatória era essencial a ponto de ter se transformado em provérbio (“daqui nasce o provérbio: como Nemrod robusto caçador frente a Deus”).
No Inferno XXXI, Dante pune Nemrod, pelo seu “pensamento doentio”, com a perda da linguagem significante (“que assim está para ele qualquer linguagem / como a sua para os outros, a ninguém é conhecida”): ele pode apenas proferir sons privados de sentido (“Raphél may améch zabì almi”) ou, como caçador, tocar a corneta (“[...] alma estúpida / mantém contigo a corneta e com ela te desabafes”).
O que Nemrod caçou? E por que a sua caça é “contra Deus”? Se a punição de Babel foi a confusão das línguas, é provável que a caça de Nemrod tivesse a ver com um aperfeiçoamento artificial da única língua dos homens, que devia abrir à razão um poder sem limites. Isso ao menos deixa entender Dante, quando, para caracterizar a perfídia dos gigantes, fala do “argumento da mente” (Inf., XXXI 55).
É um mero acaso o próprio Dante ter apresentado, no De vulgari Eloquentia, a sua pesquisa do vulgar ilustrando-a constantemente através de imagens de uma caça (“caçamos a língua”, I, XI, 1; “aquilo que caçamos”, I, XV, 8; “as nossas armas de caça”, I, XVI, 2), e que a língua assim perseguida seja assimilada a uma besta feroz, a uma pantera?
Nas origens da nossa tradição literária, a pesquisa de uma língua poética ilustre se coloca assim sob o inquietante signo de Nemrod e da sua caça titânica, quase significando o risco mortal implícito em toda pesquisa sobre a linguagem que queira de algum modo restaurar o esplendor originário.
A “caça da língua” é a um só tempo arrogância insolente anti-divina, que exalta o poder de raciocínio da palavra, e amorosa busca que quer, ao contrário, reparar a presunção babélica. Todo sério empenho humano na palavra deve sempre se confrontar com esse risco.
Na poesia do último Caproni, esses dois temas se aproximam até coincidir na ideia de uma caça obsessiva e feroz cujo objeto é a própria palavra, e que une em si a desconfiança do gigante bíblico sobre os limites da linguagem e a piedosa veneração dantesca. Os dois aspectos da linguagem humana (a nomeação de Nemrod e a amorosa busca do poeta) tornaram-se então indistinguíveis, e a caça é de fato uma experiência mortal, cuja presa – a palavra – é uma besta que, diz Caproni, “vivifica e mata”, e que, “mansa e atroz”, talvez volte uma última vez a vestir o manto pintado da pantera dantesca (mas uma “pantera nebulosa” e “suicida”).
A palavra retorna então à sua própria potência lógica, diz si mesma, e, nesse extremo gesto poético, apreende somente a própria insensatez, aparece apenas no seu desaparecer. O “trompete” que se ouve vibrar “em eco” na música interrompida do último Caproni é a última e abafada ressonância da “alta corneta” delirante de Nemrod, do “robusto caçador diante de Deus”.

Giorgio Agamben, A caça da língua in Categorias Italianas. Estudos de poética e literatura., Edições UFSC, 2014.
Há quatro razões por que os cínicos são assim chamados. Primeiro, por causa da indiferença do seu modo de vida, pois fazem um culto à indiferença e, assim como os cães, comem e fazem amor em público, andam descalços e dormem em barris nas encruzilhadas. A segunda razão é que o cão é um animal sem pudor, e os cínicos fazem culto à falta de pudor, não como sendo falta de modéstia, mas como sendo superior a ela. A terceira razão é que o cão é um bom guarda e eles guardam os princípios da sua filosofia. A quarta razão é que o cão é um animal exigente que pode distinguir entre os seus amigos e inimigos. Portanto, eles reconhecem como amigos aqueles que são adequados à filosofia, e os recebem gentilmente, enquanto os inaptos são afugentados por ele, como os cães fazem, ladrando contra eles.

5 de fevereiro de 2015

embora dele nada seja visível, Danae sabe instantaneamente que é dele a presença que silenciosamente invade o corpo. ela também nada diz, não se demove do seu sono leve. mas quando ele a envolve, completa e imediatamente, há como um sorriso ligeiro sobre os lábios. dizem que não se é mulher se não se souber sorrir perante os abismos.
na força que a procura há violência, energia, impulso, uma estabilidade impossível de negar e — que extraordinário é dizer dela — há rigor. quando chega, chega claramente, quando se move, como se move, e a retirada também, tudo é exato, preciso, próprio. é um silêncio com textura que assim que se declara encontra entrega. a Danae surpreende que o prazer possa ser tão intenso mesmo quando apenas faz parte da imaginação. embora a isto, a ele, não se possa realmente chamar imaginação. Danae não sabe se ele sente a sua rendição. Danae não sabe nada. Danae dorme.
que matéria é esta, em tudo viva, como se fosse a primeira coisa viva, ainda que nada nela o indique, que desperta quando nos aproximamos, que denuncia com limpidez a indivisibilidade entre pensamento e ação, e porta plenitude espontânea, sem combustão, sem absurdo, sem malícia, sem morte, desinteressada como as coisas do mundo, os objetos e os acontecimentos, e entre elas encontrada, por acaso, através de um gesto insignificante?

3 de fevereiro de 2015

e depois, que fazer?
prosseguir na noite
como um gato que escolhe a cama
muda, estrangeira, que importa?
estalar sem nome
como um vaso
oco
que não conheceu eco.
John Cage / Morton Feldman: Radio Happenings I - IV
Nova Iorque, de julho de 1966 a janeiro de 1967

1 de fevereiro de 2015

cheguei cedo àquele ponto da vida em que as escolhas são feitas consoante se submetem em absoluto à vontade que tenho de as fazer. como a única pessoa viva que vê a minha vida sou eu própria, compreendo que por vezes as minhas escolhas possam parecer desprovidas de sentido para os outros. o sentido é de resto uma ideia que só interessa aos outros, aos leitores, aos biógrafos, à família, aos amigos, e no que me diz respeito, há muito que me desfiz dela. há, no entanto, certa classe de vontades, mais rara, que se confunde em absoluto com o sentido. mostram-se altivas porque nos sabem submetidos à sua clareza. e não é raro que estejamos de facto submetidos, é mesmo difícil, embora não impossível, deixarmos de nos submeter, especialmente à sua alegria. mas (feliz ou infelizmente, que não é meu lugar saber pois não fui eu que a criei e portanto não sei para que serve) em jogo com a vida nem a determinação chega nem as evidências se bastam. há evidências que com o tempo se transformam em logros e por sua vez quimeras que ganham viço, surpreendendo-nos um dia com toda a sua perfeição e beleza. pode haver milhares de razões a sustentar uma escolha; tenha ou não sentido, siga mais ou menos amplamente a nossa vontade, nenhuma delas lhe confere a certeza e o garante de ser uma boa escolha. quando vou a uma loja escolher uma caneca, é o objetivo da compra que vai determinar a escolha: se quero uma caneca que dure, se quero uma que seja bonita, se quero uma caneca que dure e seja bonita ou se quero uma caneca terrivelmente feia. mas nem toda a agudeza dos nossos sentidos, aprimorados ao longo de anos de evolução mais uma vida ainda a fazer-se, irão garantir que aquela caneca terrivelmente feia e praticamente inquebrável, não vá desaparecer da cozinha do escritório onde trabalho e para onde a levei. os otimistas dizem que se soubermos bem o que queremos não o falhamos. não saber o que se quer é assim como não ter para onde ir. o que me lembra Porthos, o mosqueteiro grande e desajeitado, a correr para fora do subterrâneo onde acabou de depositar uma bomba e onde morrerá a pensar como é que poe um pé à frente do outro. é este o ponto em que se exercem as escolhas: qual é a natureza da evidência que as suporta? há evidências que estão manchadas pela fantasia, outras pelo desejo, pela ambição, pela inveja. há evidências obscuras, cuja força pode guiar uma vida inteira, e que antecipam no seu íntimo a mais simples clareza. e o amor é da natureza da evidência? se assim fosse não amaríamos os filhos da mesma maneira? e no entanto: haverá sentido em perguntar qual foi o filho que mais custou a Medeia matar? o que é possível escolher? quando a caneca desaparece do escritório não deixa de ser praticamente indesejável e praticamente inquebrável. os pintores por exemplo, passam a grande maioria do seu tempo a tentar obter a cor que já veem. e pintores, escolheram ser?
os nossos juízos, de todas as operações mentais a mais espontânea, não são ideias porque não são pensamentos, mas sim aquilo que diz da validade de um conteúdo de pensamento. não revelam rigorosamente nada da vida psíquica do que emite àquele que compreende. os juízos são unívocos porque dizem respeito à compreensão (e não apenas à interpretação, que pode ser múltipla e portanto equívoca) de um conteúdo de pensamento. ora, a relação da ação com a vida mental é constante. o ato é aquilo que podemos ver de outrem e o que os outros mostram é sempre parcial, condicionado pelo possível e pelo tempo, ou seja, pela própria estrutura do eu e pela História. sem nunca corresponder a uma definição total da vida interior, toda a ação revela também o seu negativo: aniquila tudo o que não é ela própria. somos sempre – e apenas – uma parte de nós próprios. o paradoxo está em que, conscientes disto ou não, o conhecimento está sempre dificultado pelo que se encontra oculto. para me ajudar a orientar nesse breu, um amigo disse-me uma vez que devemos escolher aquilo que gostaríamos de poder fazer até morrer. uma evidência não pode ser persuasiva. não se avalia pelo seu grau de sinceridade, pela realidade que a possa confirmar. a possibilidade e impossibilidade são-lhe anteriores ou posteriores, mas não se lhe ajustam. nunca a força da nossa convicção serve para avaliar uma evidência, diria mesmo que serve apenas para termos cuidado com ela. as evidências só se tornam evidências quando nos tornamos a nossa própria escolha: a firmeza de uma evidência está na sua naturalidade.
não é sem prazer que vejo a alegria excêntrica dos primeiros anos da minha vida converter-se aos poucos numa alegria branda, cada vez mais ténue, e a braços com o grande desconhecido do presente. talvez morra reduzida a um mero sorriso, demasiado subtil por não se dirigir a nem ser visto por ninguém. haja sorte.

31 de janeiro de 2015

Before Diagnosis

The lake is dead for a second time
this January. And no matter
how many geese lay their warm breasts
against the ice or fly across
its hard chest, it doesn’t break,
or sink, or open up and swallow them.
The ice is frozen water.
There is no metaphor for exile.
Even if these trees continue to shake
the crows from their branches,
my sister is still farther away from her mind
than we are from each other
sitting on opposite ends of a park bench
waiting for evening to swallow us whole.
In the last moments of a depressive, a sun.
In the last moments of a sun, my sister
says a man is chasing a goose through the snow.

Roger Reeves