31 de outubro de 2014

Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.

A meio caminho da nossa vida
encontrei-me numa selva obscura
por haver-me perdido da via direita.


Dante Alighieri, A Divina Comédia, primeiras estrofes de Inferno (traduzido por mim que não sei italiano).
As sombras chinesas que fazíamos no quarto, antes de adormecer, eram o nosso no man's land. Uma terra onde as desmesuras se impunham ao plano da paisagem e reequacionavam as suas hierarquias. Nenhuma soberania a regulava, nem mesmo a dos contornos, constantemente desfeitos para dar lugar a outras formas e sequer mesmo a das formas, pois algumas delas eram extraordinariamente abstratas e os matizes das sombras eram inumeráveis. Por isto mesmo, era uma terra que queríamos habitar, isto é: queríamos transformar-nos nas sombras e que as sombras se transformassem em nós. Só assim poderíamos saber verdadeiramente o que era a sombra.




























Andrei Tarkovsky de Michal Leszczylowski (1988).
Já não há lembrança de coisas passadas;
nem haverá qualquer lembrança de coisas
que estão para vir com aqueles que hão-de vir depois.

Eclesiastes

28 de outubro de 2014

O corolário dos sonhos é o massacre pois destinam-se invariavelmente à rutura, violenta como um parto. Talvez por isso tenha aprendido a não me lembrar deles, talvez por isso também não tenha imaginação. Já me rodeia demasiada água a que sobreviver. Se tiver que dizer a verdade no entanto, terei de confessar que lastimo ambos. Sempre que adormeço espero lembrar-me de alguma coisa na manhã seguinte e para começar a escrever tenho de desistir de esperar por uma ideia. Quase nunca me lembro de nada e quase nunca tenho ideias. Vivo primitivamente, presa à necessidade. Não sou falha de vontade, sou falha de indignação. Aos demónios correspondem agora imagens tenazes e brilhantes que não sei dizer se pertencem ao passado, ao futuro ou a nenhum deles.
Aquele que escreve, escreve como um eterno convalescente. 

(...) Nietzsche vê como um dever proteger-se daqueles que o lêem, impedindo-os de se embrenharem demasiado naquilo que os horrorizaria: o acesso ao percurso do espírito que se torna livre (...).

O espírito que se está a tornar livre sabe que daí em diante o “que tu deves” se submete àquilo que só agora lhe é permitido.

26 de outubro de 2014

Instruções para a queda

mãe como limpo estas manchas do nascimento
se tenho um rosto nas mãos
bordado

pai não me ensinou a fugir
só a ficar quieta e a não fazer barulho
- empunhando uma espingarda
apreciarás o silêncio e a camuflagem -

mas o meu defeito é sempre o mesmo:
embalar o animal entre a carne e o sonho.

tudo o que estávamos
dispostos a destruir



María Sánchez
é assim como um grande mapa de travessias, cuja origem se perdeu da memória e de destino desconhecido. alguns trilhos permanecem visíveis mas a grande maioria deixou há muito de ser reconhecível e os rios alastraram os caudais ocultando os indícios das civilizações que os sulcaram. não se sabe hoje se os deuses olharam por esses homens e se a língua que falavam criava elos. o que deles resta é este mapa, ele próprio a desaparecer, de travessias insondáveis e íntimas. músicos houve que procuraram, sem sucesso, converter essas linhas delicadas e invulgares em melodias coevas mas nunca mais se ouviu falar neles. um arqueólogo decidiu rumar até esse território mas não chegou a transpor a porta de sua casa e aí ficou até hoje onde, dia após dia, o podemos ver preparado para partir sem nunca chegar a mover-se. os físicos disseram que só os poetas poderiam falar sobre esse mapa e os poetas calaram-se. houve sim uma criança que falou, mas ninguém a ouviu e dela nada se sabe. dois filósofos, um muito obscuro e outro muito controverso, que nunca ouviram falar um do outro, dizem que o mapa não é realmente um mapa porque nada há nele que indique uma relação entre possíveis. cada um com o seu vocabulário particular, afirmam que se trata de um fragmento: a raiz de uma palavra que nunca foi dita, o vestígio de um acontecimento que abortou, o princípio turvo de uma visão que não passou de incognoscível. o que parece ser mais peculiar nessa carta, contudo, é a sua qualidade indestrutível. não da matéria em que está inscrita, uma rede feita de velocidades claramente definidas e intercaladas por espaços vazios, mas da impressão que o desenho dos trilhos inscreve naquele que os observa pela primeira vez. o movimento negro em expansão desses padrões incompletos, transmite a sensação de nos serem vizinhos e, a acreditar no que todos descrevem, a revelação dessa familiaridade é insuportável.

25 de outubro de 2014

vi uma estrela cadente à porta de casa. não pedi nenhum desejo porque só gostaria de ver mais estrelas cadentes, como esta, com um longo rastro de fogo, até morrer.