8 de julho de 2014

na rua inundada de sol
dos dois lados
o rosto encadeado

7 de julho de 2014

Nunca percebi as pessoas que adoram a velocidade. Que interesse pode haver em ir o mais rápido possível em cima de uma mota ou dentro de um carro, por exemplo? Só me fascina a adrenalina da lentidão, se adrenalina é coisa que lhe possa chamar. Gostaria de escrever e falar com uma tonalidade como essa, de uma lentidão quase imperceptivelmente pontoada por raros júbilos, mas um júbilo que incluísse o seu contrário (como se chama a isso que une as duas pontas de um círculo?). E, um dia, gostaria de nomear essa lentidão. Pelo menos uma vez na vida, nomeá-la.

6 de julho de 2014

Percebo perfeitamente a Eva que, seduzida pela serpente, retira o paraíso a Adão, perdendo-o para si mesma. Eva, de quem todos herdámos a culpa, é a mulher que conhece o homem, a sua insensatez e o seu laxismo.
A história parece incompleta. O Génesis quer fazer-nos acreditar numa ausência de ligações primordiais entre quer a serpente e o homem quer entre Eva e a serpente. E isso, a meu ver, torna a história ilegível, incompreensível.
Personagens: o primeiro homem, a quem os animais não fizeram companhia que bastasse para esquecer a solidão. A primeira mulher, perfeição da obra fora de qualquer espontaneidade. A serpente, presença do mal a ocupar o centro do paraíso, estranha presença de um perigo que nem sequer é indesejado para poder ser combatido. E a árvore do conhecimento do bem e do mal, cujos frutos eram interditos mas pendiam, amadurecidos.
Quando fica a conhecer o bem e o mal, Eva vê também a sua perfeição, única e posterior. Mas a Eva seduzida já conhece a sua solidão. Ora, isto passa-se após a oferta do fruto: após ter falado. A primeira vez que Eva fala coincide com a queda original.

5 de julho de 2014

Estive a escrever um parágrafo sobre uma frase numa carta que uma vez me enviaram e quando por fim acabei e reli o que tinha acabado de escrever, percebi que a quero, a ela e a tudo o que penso sobre ela, só para mim. É a primeira vez que encontro uma coisa com este caráter nas minhas memórias. Não de secretismo, o caráter, mas de grau de apreço. São demasiado raras as coisas que não queremos usar.

3 de julho de 2014

Disseram-me que o elefante que recolhia amendoins da nossa mão no Jardim Zoológico e depois tocava o sino, morreu. Disseram-me, a meio de outra frase: claro. Claro que morreu, claro que era velho. De facto, provavelmente seria velho até quando nasci, mas nunca tinha imaginado a sua morte e por isso a notícia chocou-me, um pouco como se tivesse recebido a notícia da morte de um amigo que vivesse noutra cidade. Gostaria de ter assistido às suas exéquias e tenho pena de não poder voltar a vê-lo. O elefante deixou de estar , do outro lado do fosso, a comer amendoins e a tocar o sino.
A conversa tinha contudo começado com a história da sua vinda para Portugal. Este elefante terá pertencido ao tio avô de um amigo que vivia em Angola e que, depois de ter tido alguns problemas com ele, o ofereceu ao novo Jardim Zoológico de Lisboa. De súbito, fico a conhecer uma pequena parte da vida daquele que foi o ser mais amado na minha infância, justamente o início e o fim de uma longa vida, pois ele era velho quando o conheci, o que na altura me causou enorme espanto e estranheza, porquanto aquele que eu tinha longamente imaginado em devaneios solitários, comigo no dorso, a voar, era robusto e jovem. O elefante velho do Jardim Zoológico estava afastado de nós por um enorme fosso, recebia amendoins e tocava o sino mecanicamente, uma vez após a outra, ao serviço de adultos e de crianças, a ponto de a intervalos o esconderem para descansar. No momento que se seguiu à explicação do motivo do seu desaparecimento, ninguém poderia ter imaginado que no profundo e incompreensível silêncio em que mergulhei o resto da tarde, se escondia ódio contra todos os presentes, os meus pais incluídos, cuja voz denunciava em primeira fila indiferença e mesmo apatia perante a situação. A situação. O elefante dos meus devaneios, sobre quem pedia muitas vezes para me falarem outra vez, era inteligente, amável, gostava de brincar, era tão poderoso que aceitava amendoins das nossas mãos. Em suma, era livre.
Poderá esta ter sido a primeira vez que me vi rodeada de mutismo? Tinha chegado ao Zoológico cumprindo uma ansiada promessa, e aquela, pensava eu, seria a primeira de muitas visitas. Demasiado consciente de um ódio que nasceu contra a minha própria infância, nunca lá voltei.
Sexta-feira de manhã [5 de Junho de 1942],
às sete e meia, na casa de banho.

Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner. E de repente fiquei a saber: é assim que eu quero escrever. Com um espaço imenso à volta das palavras. Detesto muitas palavras. Quereria escrever somente palavras organicamente inseridas num grande silêncio, daquelas cuja única utilidade é dominar o silêncio e rasgá-lo. Na realidade as palavras devem acentuar o silêncio, tal como naquela gravura japonesa com o ramo florido para baixo, para o canto. Umas ténues pinceladas - mas com que olho para reproduzir o mais pequeno pormenor - e, à volta delas, o grande espaço, mas não um espaço representando um vazio, mas sim, digamos, um espaço com alma. Detesto uma acumulação de palavras. Na realidade pode usar-se poucas palavras para nomear as grandes coisas que importam na vida. Se algum dia chegar a escrever - o quê, sinceramente? - gostaria então de pincelar algumas palavras sobre um fundo mudo. E há-de ser mais difícil de reproduzir e animar esse silêncio e essa mudez do que achar as palavras. O importante será a relação justa entre palavras e silêncio, um silêncio no qual acontece mais do que em todas as palavras que uma pessoa consiga reunir. E em cada novela - ou seja lá aquilo que for - o fundo em silêncio terá de ter um matiz e um conteúdo diferentes, exactamente como acontece nas gravuras japonesas. Não se trata de um silêncio vago e inatingível, esse silêncio terá também de ter os seus próprios contornos definidos e a sua própria forma. E, por conseguinte, as palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.
(...).

Etty Hillesum,  Diário 1941-1943.
Acho estranhíssimo que deixassem os escravos cantar. Mas revelador.

2 de julho de 2014

La question ne se pose pas, il y a trop de vent.

Boris Vian
Guardo a sensação de sentir uma proximidade intolerável com a Duras. Não pego num livro dela há anos, por medo desse espelho. Creio que não conseguiria escrever. Quando voltar aos seus livros, o que tenho muitas vezes vontade de fazer, terei deixado de precisar de ser visível. Mas também terei deixado de precisar de ler outros livros.