15 de junho de 2014

Por vezes, mesmo quando escrevo no meu diário, hesito entre manter segredos e escrever sem explicar nada. A incerteza de chegar a tempo de destruir tudo antes que alguém conheça a miséria da minha infância que perdura, domina-me. Sou como os tementes a deus, desconfio da disciplina como do diabo que macula o que é puro e ao mesmo tempo estou presa a ela, como a uma oração.
Coisas que gostaria de corrigir:

À pergunta «Mas como é que isso se faz?» gostaria de ter respondido, procurando o olhar da única pessoa que pareceu entender aquilo que a motivou, «Queres responder T.?».

Em vez de um impropério, assumir o nada.

Ter escrito mais.

Em vez de silêncio, a gargalhada que abafei.

Que peremptória, lúcida, sagaz, não desejasse salvação, e fosse modesta a esperança que inesperadamente faz vibrar a morte.

13 de junho de 2014

Foi a escrita que me revelou os homens e nada mais.
Corpos com devastações assombrosas
E um sorriso delicado a cobrir as extremidades
Embora com algumas, premeditadas, falhas
Através das quais se mostram 
Fortalecidos por silêncios implacáveis.
Foi-lhes destinada a mais ingénua malícia
De tal modo que quase sangra
Por gozar de uma atenção vegetal,
Divina.
As suas vozes tremem mas quem ouve o seu tremor?
¿Para onde vão estes fogos
Onde o tempo sucumbiu
E continua a sucumbir
Para sempre.
Toda a carne é muito mansa,
Como as torturas da memória e da certeza.
O grito espantoso, infatigável,
Possui a ociosa luminosidade das vagas
Repelindo obstinadamente o vácuo
E intoleravelmente a própria praia.

12 de junho de 2014

Vou ter de achar uma linguagem nova.

Etty Hillesum, Diário 1941-43.

9 de junho de 2014

Como os habitantes da cidade que Chihiro visita, perdi a memória do meu nome e não posso regressar àquilo que me pertence. Há no meu corpo um tremor ligeiro, assim as folhas de uma árvore cuja imobilidade é permanentemente perturbada por elementos exteriores: o tabaco, o jejum.
A loucura espreita, insidiosa e leve. O sol que brilhe. O mar que receba os rios. Viverei como as moscas, que no seu movimento descrevem o padrão insignificante do silêncio.

8 de junho de 2014

Os homens têm casas, as mulheres têm habitats.
Um habitat é, por definição, o que está para além das imagens.

3 de junho de 2014

Será certamente pueril da minha parte mas nunca até ontem me tinha apercebido que nada me revolta tanto quanto a morte. Parece uma constatação evidente, por ser a única coisa em relação à qual somos verdadeiramente impotentes, mas nunca tinha pensado nisso de forma tão inequívoca como ontem perante um caixão, a família do morto, e um padre que falava de felicidade e de paraíso a apontar com os dois dedos indicadores para o céu. Talvez porque o morto não me pertencesse tivesse sido possível pensar. Não me lembro de alguma vez ter falado com alguém sobre fé nem sobre a ausência dela, a minha. Não creio que se possa falar disso e portanto não percebo como se podem fazer palestras sobre isso. No fundo não acredito que alguma palavra tenha o poder de evangelizar. Muito menos quando morre alguém que amamos. Nesses momentos devia respeitar-se o silêncio que fica.

1 de junho de 2014

Desço a colina ao encontro dos braços de sol - soberanos, maciços - desta manhã, animada pelas roupas leves que vesti, pelo vento fresco que toca a superfície da pele do pescoço e das pernas e pelo rumor dos passos e da respiração das pessoas a entrar e a sair do comboio à beira rio. Quando entro no jardim -  circular, que outra forma mais bela para um jardim? -, um cheiro atordoa-me ao ponto de me fazer parar, como um acidente.
«De onde vem de onde vem?» penso num brado abafado, enquanto percorro com dificuldade um obscuro túnel temporal cheio de lapsos e desvios insidiosos. E a dificuldade é imensa. Essa luta frágil, oca, frívola, propagava a leviandade que atrás me tinha trazido alegria. Não sabia onde estava e não podia caminhar.
Encontrei o cheiro não sei quanto tempo depois e quase nenhuma imagem. Um som abafado de crianças e de água e outro cheiro, a cloro, razão da dificuldade em reunir-me à memória do perfume deste jasmim, pois estava misturado. Sobre a ponte, que atravessava todos os dias a caminho da piscina, um tapete vermelho com bolas salientes onde me demorava a passar, os peixes dentro da água verde e os chorões debruçados sobre o rio. É sempre a mesma vertigem e sempre o mesmo inconsolado regresso a casa.

31 de maio de 2014

Aprendi cedo que o ser das coisas é independente daquilo que possamos ter a dizer sobre elas. Através de dois pormenores que aos meus olhos alcançaram relevo, o passado e o presente eram iguais mas o futuro também.
É a imaginação que nos aproxima da beleza, e a proximidade que convoca a sua legitimação. Gostava de ter inventado a palavra rotunda, mas alguém teve ideia igual e isso é como a tua nudez ser um facto apenas quando te despes. Tiras a roupa e existes todo.

Raquel Nobre Guerra

19 de maio de 2014

No deserto, à hora do sol inclemente, é possível ver uma formiga a quilómetros de distância.
Encontrei ontem o caderno onde escrevi pela primeira vez este sonho, ao acordar, em mais de quatro páginas A4.

18 de maio de 2014

Observo um bando de gaiatos de dentro da minha carcaça sem nostalgia. O ímpeto da minha melancolia aborda-me com doçura e alastra sobre a profunda, vasta planície silenciosa, libertando-me a uma pobreza pura. Sem assombro, eu estou aqui.

17 de maio de 2014

Como o humor se torna uma violência para aquele que esgotou tudo. Não porque haja generosidade no riso, que assim se tornasse impossível, mas porque o que há de comum a todas as formas de humor, aquilo que há de mais primário no riso, é a sua inexpiável crueldade.

6 de maio de 2014

- Mãe, o sangue da beterraba é como o nosso?
Acordei ao ser catapultada na direção inversa do túnel pelo imenso riso de alguém que nunca cheguei a ver e que me envergonhava intimamente. Quando abri os olhos, a pessoa que estava sentada ao meu lado, com os braços e o tronco em repouso sobre o meu corpo, levantou-se  sobressaltada pelo som de uma máquina que irrompeu o silêncio, aliviando-me do peso. Consegui ver um tubo que descia do meu rosto para o lado direito da cama. Estava lasso, percebi que podia mexer um pouco a cabeça e voltei-a lentamente para o lado esquerdo, de onde vinha a luz. Há um mês que não me mexia.
Era uma luz amarela, crepuscular, que passava através do vidro de uma pequena janela bastante alta, e iluminava um dos cantos da sala. Tudo estava imóvel em meu redor, não havia ninguém, nem nas outras camas nem na sala e o único som que podia ouvir vinha das máquinas, suave mas implacavelmente ritmado. Sabia onde estava, ou melhor, sabia a que história correspondia aquela imagem, aquele lugar, aquela pessoa ali deitada ligada a umas máquinas, mas ao mesmo tempo era uma imagem, e portanto uma história (do lugar e de mim própria), absolutamente indefinida, nem real nem irreal. Não sentia nada. Subitamente um ramo de plátano surge lá fora diante da janela e começa a bater contra o vidro, empurrado pela força do vento. O ritmo desse som, perfeitamente claro, impôs-se, fazendo-me esquecer aquele que soava no interior. O ramo, as folhas no ramo e as bolotas entre as folhas, batiam na janela, recuavam e voltavam a bater numa cadência instável, com a luz oblíqua de um fim de tarde (de março, soube mais tarde) a passar entre eles. Foi nesse momento que vi a vida pela primeira vez, o seu intenso ininterrupto movimento. Eu vivia.

30 de abril de 2014

Exercemos uma sobre a outra, eu e a minha irmã, uma ligeira pressão de contágio, de modo que nunca se sabe quem está a influenciar quem, como se vivêssemos ainda dentro do mesmo ovo.

27 de abril de 2014

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol, com ela.
Do nascer ao por do sol, se não houvesse nuvens, essa varanda era como a superfície de um lago onde a luz caía até ser uma sombra, nós peixes vendo uma parcela do exterior a partir desse limiar: o sol, o céu, algumas árvores, pássaros, coelhos a saltar entre arbustos, a serra e mais nada. E bastava.
Havia uma amendoeira em frente e os melros eram tantos que podia observá-los muito tempo, o que fazia, saltando de um para outro sem precipitações, como se esperasse (com uma ansiedade dissimulada) que se transformassem em corvos. Depois muitas oliveiras, um limoeiro, trigo, duas ou três roseiras selvagens, algumas casas e a serra ao fundo, uma onda prestes a engolir-nos. Ouviam-se muitos grilos, demasiados no verão, ao ponto de não conseguir dormir e vir para a varanda ver as estrelas e o lugar negro de onde vinha o som.
Vi dali, várias vezes, a serra a arder. «Cheira a fogo!», dizia a minha avó, muito antes dos bombeiros soarem o alarme na Vila; todos os vizinhos corriam, como ela, avisando-se e procurando o melhor ponto para o ver. Por vezes a cinza enchia o ar e respirá-la queimava-nos também a nós. Consoante o ano, a serra ardia pouco tempo, muito tempo, pouca área, muita área. Do que me lembro é de ver pequenos fogos até um certo ano, um ano em que nada se via da serra senão chamas que pareciam nunca mais deixar de arder. A minha avó ficou muito tempo encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para ele, já era de noite quando entrou em casa. Não dissemos nada.
Seria contudo pouco franca, se não dissesse que a melhor recordação da varanda em dias de sol com ela é do ano em que tive piolhos. Depois do almoço, sentava-me num banco e ela procurava-os entre a minha cabeleira. Os seus dedos grossos e macios pressionavam levemente o meu crânio e deslizavam para separar fio por fio de cabelo, enquanto o sol nos aquecia.

26 de abril de 2014

Um rapaz ruivo de olhos azuis com sardas que chora confunde-me como um inesperado paradoxo, custa-me acreditar nas lágrimas. Perturba-me a seguir, perceber como essa incredulidade tem um tom universal, sedutor ou ilusório, não sei, mas autoritário sem dúvida, como um ditado popular.

15 de abril de 2014

Acho espantoso como ainda se vive neste país. Ainda se faz teatro e música e cinema e se escrevem livros. Uma ou outra empresa — portuguesa — sobrevive. A água ainda corre, apesar de pútrida nos rios e nos ribeiros. As mãos dos amigos ainda se apertam, apesar de quase todos viverem apartados. A timidez e o pudor sobrevivem, apesar de tudo apelar à opressão da luz. As crianças brincam sozinhas ou aos pares em vez de correrem em hordas, mas há crianças, com olhos que nos arrebatam ao futuro e ao passado. Ainda há quem faça compras nos supermercados e encha os frigoríficos e quem tenha horários para trabalhar, fins-de-semana, feriados a gozar, fins de tarde para descansar. Há quem leia o jornal e apanhe aviões e há quem fique calado num banco de jardim com a felicidade de um suspiro involuntário. Há festas, bailes, jantares, pequenos galhos de árvores onde nascem flores, ainda se come fruta. E vem aí o verão não é?