19 de maio de 2014

No deserto, à hora do sol inclemente, é possível ver uma formiga a quilómetros de distância.
Encontrei ontem o caderno onde escrevi pela primeira vez este sonho, ao acordar, em mais de quatro páginas A4.

18 de maio de 2014

Observo um bando de gaiatos de dentro da minha carcaça sem nostalgia. O ímpeto da minha melancolia aborda-me com doçura e alastra sobre a profunda, vasta planície silenciosa, libertando-me a uma pobreza pura. Sem assombro, eu estou aqui.

17 de maio de 2014

Como o humor se torna uma violência para aquele que esgotou tudo. Não porque haja generosidade no riso, que assim se tornasse impossível, mas porque o que há de comum a todas as formas de humor, aquilo que há de mais primário no riso, é a sua inexpiável crueldade.

6 de maio de 2014

- Mãe, o sangue da beterraba é como o nosso?
Acordei ao ser catapultada na direção inversa do túnel pelo imenso riso de alguém que nunca cheguei a ver e que me envergonhava intimamente. Quando abri os olhos, a pessoa que estava sentada ao meu lado, com os braços e o tronco em repouso sobre o meu corpo, levantou-se  sobressaltada pelo som de uma máquina que irrompeu o silêncio, aliviando-me do peso. Consegui ver um tubo que descia do meu rosto para o lado direito da cama. Estava lasso, percebi que podia mexer um pouco a cabeça e voltei-a lentamente para o lado esquerdo, de onde vinha a luz. Há um mês que não me mexia.
Era uma luz amarela, crepuscular, que passava através do vidro de uma pequena janela bastante alta, e iluminava um dos cantos da sala. Tudo estava imóvel em meu redor, não havia ninguém, nem nas outras camas nem na sala e o único som que podia ouvir vinha das máquinas, suave mas implacavelmente ritmado. Sabia onde estava, ou melhor, sabia a que história correspondia aquela imagem, aquele lugar, aquela pessoa ali deitada ligada a umas máquinas, mas ao mesmo tempo era uma imagem, e portanto uma história (do lugar e de mim própria), absolutamente indefinida, nem real nem irreal. Não sentia nada. Subitamente um ramo de plátano surge lá fora diante da janela e começa a bater contra o vidro, empurrado pela força do vento. O ritmo desse som, perfeitamente claro, impôs-se, fazendo-me esquecer aquele que soava no interior. O ramo, as folhas no ramo e as bolotas entre as folhas, batiam na janela, recuavam e voltavam a bater numa cadência instável, com a luz oblíqua de um fim de tarde (de março, soube mais tarde) a passar entre eles. Foi nesse momento que vi a vida pela primeira vez, o seu intenso ininterrupto movimento. Eu vivia.

30 de abril de 2014

Exercemos uma sobre a outra, eu e a minha irmã, uma ligeira pressão de contágio, de modo que nunca se sabe quem está a influenciar quem, como se vivêssemos ainda dentro do mesmo ovo.

27 de abril de 2014

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol, com ela.
Do nascer ao por do sol, se não houvesse nuvens, essa varanda era como a superfície de um lago onde a luz caía até ser uma sombra, nós peixes vendo uma parcela do exterior a partir desse limiar: o sol, o céu, algumas árvores, pássaros, coelhos a saltar entre arbustos, a serra e mais nada. E bastava.
Havia uma amendoeira em frente e os melros eram tantos que podia observá-los muito tempo, o que fazia, saltando de um para outro sem precipitações, como se esperasse (com uma ansiedade dissimulada) que se transformassem em corvos. Depois muitas oliveiras, um limoeiro, trigo, duas ou três roseiras selvagens, algumas casas e a serra ao fundo, uma onda prestes a engolir-nos. Ouviam-se muitos grilos, demasiados no verão, ao ponto de não conseguir dormir e vir para a varanda ver as estrelas e o lugar negro de onde vinha o som.
Vi dali, várias vezes, a serra a arder. «Cheira a fogo!», dizia a minha avó, muito antes dos bombeiros soarem o alarme na Vila; todos os vizinhos corriam, como ela, avisando-se e procurando o melhor ponto para o ver. Por vezes a cinza enchia o ar e respirá-la queimava-nos também a nós. Consoante o ano, a serra ardia pouco tempo, muito tempo, pouca área, muita área. Do que me lembro é de ver pequenos fogos até um certo ano, um ano em que nada se via da serra senão chamas que pareciam nunca mais deixar de arder. A minha avó ficou muito tempo encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para ele, já era de noite quando entrou em casa. Não dissemos nada.
Seria contudo pouco franca, se não dissesse que a melhor recordação da varanda em dias de sol com ela é do ano em que tive piolhos. Depois do almoço, sentava-me num banco e ela procurava-os entre a minha cabeleira. Os seus dedos grossos e macios pressionavam levemente o meu crânio e deslizavam para separar fio por fio de cabelo, enquanto o sol nos aquecia.

26 de abril de 2014

Um rapaz ruivo de olhos azuis com sardas que chora confunde-me como um inesperado paradoxo, custa-me acreditar nas lágrimas. Perturba-me a seguir, perceber como essa incredulidade tem um tom universal, sedutor ou ilusório, não sei, mas autoritário sem dúvida, como um ditado popular.

15 de abril de 2014

Acho espantoso como ainda se vive neste país. Ainda se faz teatro e música e cinema e se escrevem livros. Uma ou outra empresa — portuguesa — sobrevive. A água ainda corre, apesar de pútrida nos rios e nos ribeiros. As mãos dos amigos ainda se apertam, apesar de quase todos viverem apartados. A timidez e o pudor sobrevivem, apesar de tudo apelar à opressão da luz. As crianças brincam sozinhas ou aos pares em vez de correrem em hordas, mas há crianças, com olhos que nos arrebatam ao futuro e ao passado. Ainda há quem faça compras nos supermercados e encha os frigoríficos e quem tenha horários para trabalhar, fins-de-semana, feriados a gozar, fins de tarde para descansar. Há quem leia o jornal e apanhe aviões e há quem fique calado num banco de jardim com a felicidade de um suspiro involuntário. Há festas, bailes, jantares, pequenos galhos de árvores onde nascem flores, ainda se come fruta. E vem aí o verão não é?