30 de novembro de 2013

Cheiro à minha tia na minha infância, a por lápis azul nos olhos diante da cómoda e do espelho. Eu estou sentada aos pés da cama, com os olhos muito abertos, a tentar perceber porque está ela a fazer o que está a fazer e a admirar todos estes objectos reunidos em torno de um rosto. A colcha é um pano rosa-velho bordado. Ou seriam as paredes? Havia um papel de parede em tecido, julgo eu, e era rosa-velho. Através da janela aberta daquele quarto, alguns anos mais tarde, num mês de Agosto, haveria de ouvir as cigarras e pensar que não pertencia nem àquele lugar nem a nenhuma daquelas pessoas. A solidão aos 10 anos, uma deriva sem quaisquer amarras e contudo já tão amarga.
Era Domingo. Antes de irmos almoçar, a minha tia saía do banho e vestia-se em frente à cómoda. Antes, ajudava-me a sentar na cama, logo atrás dela, os meus pés ficavam a balouçar. Um pouco na diagonal conseguia ver o rosto dela de lado e no espelho. Seguiam-se cremes atrás de embalagens de cremes, com vários formatos e cores. Ela ía espalhando no corpo e quando olhava para mim, qualquer coisa, que me trazia nula curiosidade, a fazia sorrir. Os cheiros invadiam o quarto: vários os cremes, de perfume, de pó de arroz, de maquilhagem, de laca, mas também dos objectos no quarto, como da caixa de madeira de jacarandá, aberta no final de tudo, onde estavam as pulseiras, os colares, os brincos, que ela me deixava sempre espreitar.
Por vezes perguntava-lhe: «Esse é para quê?», porque percebi que todos os produtos tinham uma utilização específica. Havia naquilo qualquer coisa de alquimia, incluíndo por serem segredos a que eu queria aceder. Nem sempre tinha a sorte de receber um pouco de creme ou uma nuvem de bâton na cara, mas nesses dias, quando finalmente saíamos à rua para ir ao café, eu tinha poderes sobrenaturais. Poderes silenciosos, daqueles que detêm uma verdade.
Esperei que, com a velhice a aproximar-se, o corpo me trouxesse todos os degredos. Mas este cheiro a creme Nivea e perfume surpreendeu-me com a mulher que na infância eu queria ser.

27 de novembro de 2013

Coisas sobre o funeral da minha avó:

O Sr. Martins subir até à mortuária num passo muito lento e começar a chorar agarrado a mim. Não por não se lembrar de mim (não se lembrava), mas porque também a sua vida está a chegar ao fim. Algo de amargura nos seus olhos, uns olhos de criança. Não falava. Não conseguia mover-se. Achei bonito que ninguém o tivesse impedido de não conseguir mover-se.

Nunca consegui suportar o toque das mãos frias dos mortos. Mas não foi assim com as mãos da minha avó: não as conseguia largar. Talvez porque, apesar de inertes, lembrava o seu calor.

Não querer que ninguém me desse os sentimentos.

Apetecer-me expulsar toda a gente da casa mortuária. Queria enterrá-la sozinha, com as minhas mãos, e longe de todos os olhares.


Coisas sobre a morte da minha avó:

Primeiro, o telefonema. O telefonema que se espera. A voz: «É melhor vires.» Levantei-me, peguei na chave do carro, e fui.

«É provável que ela não te reconheça», disse a voz. O que é que se sente quando se ouve isto? Não sei dizer. Um silêncio cuja qualidade não sei identificar.

Um quarto de hospital, um corpo que não reconheci. Beijo-a no rosto, os olhos dela muito azuis e muito fixos nos meus, como que para substituir a fala que tinha desaparecido. «Sabes quem eu sou?» Um sorriso.

17 de novembro de 2013

Como duas torradas, não acabo o café mas nunca o acabo, fico sentada na cadeira à mesa, com o computador à frente, a visão turvada, a turvar-se, no corpo o formigueiro da noite. Parece que espero mas não sei exactamente o quê nem tenho a certeza de ser uma espera. Apetece-me fumar, talvez seja isso, espero que passe o tempo para poder fumar, não quero começar a fumar demasiado cedo. O formigueiro ainda, espreguiço-me na cadeira. O gato vê e espreguiça-se também. De resto, nada. Na verdade, sei-o, o que espero é uma razão para me levantar da cadeira, como a fome me deu minutos atrás uma razão para sair da cama. Nada me resta senão esperar.
A luz já caía quando me levantei. Observo como a luz cai. Decido fumar um cigarro, depois de decidir que quero escrever. Para mim, é tudo uma questão de velocidade. Porque excluímos sempre a ideia de lentidão da palavra velocidade?

16 de novembro de 2013

Sonhei toda a noite com infanticídios e naufrágios. Havia sempre um duplo, eu própria, que era ao mesmo tempo a criminosa e um dos bebés mortos. Mas o que me fez acordar de cada sonho, foi ser incapaz de dissimular a minha abjecção pelo assassinato da minha irmã, o outro dos bebés. Mesmo enquanto me afogava, era isso que me trazia em fuga para a vigília.

14 de novembro de 2013

Sou uma intrincada constelação de ironias.

13 de novembro de 2013

Do que me lembro é de pensar que tudo era uma história.
Por exemplo, quando passava de mão dada com a minha mãe em frente à oficina do cesteiro que havia no andar de baixo da casa ao lado da minha casa. A secreta excitação à ida e ao regresso da praia, uma vez por ano, para ver a estrada dos ciprestes (ainda lá estão). Quando me levavam à alfaiataria do meu avô. Quando entrava no pequeno anexo no quintal da casa dos meus bisavós. Quando chegava ao recinto da escola, o espaço vazio primeiro e ao fundo os pavilhões à volta, as oliveiras atrás deles, a cerca de arame e lá fora a estrada em direcção à autoestrada, à saída. Enquanto dava as primeiras passas no meu primeiro cigarro, um SG Gigante, deitada no colchão no sótão e expelindo o fumo contra a luz que entrava pela janela no tecto sem tossir uma única vez.
Tudo era uma história, tudo haveria de ser uma história. E o esquecimento?, pensava eu enquanto olhava a longa mesa de madeira maciça na alfaiataria do meu avô, marcada por inumeráveis cortes, marcas de caneta, manchas. Como lidar com o esquecimento quando quisesse lembrar; e quando seria isto? Não sabia. E no entanto o que eu vivia era já futuro, feito para o futuro, uma escarpa cujo horizonte estava no futuro. E o que eu via era frágil.
Fazia listas. «Mesa de madeira, tesoura grande e pesada de metal, veludo dos cortinados, mais escuro aqui, muita luz naquele canto, a régua de madeira com um formato estranho e com o dobro da minha altura, giz com a aparência de uma borracha, a posição da minha avó a coser, o vulto a subir as escadas em caracol, um cliente, os pontos a linha branca nos fatos a serem experimentados ainda sem mangas, os provadores de madeira com pinturas, o manequim sem cabeça e sem pernas, o ferro de vapor num local para onde era impossível encaminhar-me sem começar logo a ouvir muitos gritos», uma vez apenas me lembro de ter chegado perto, fiquei à beira dele sem me mexer apesar de não ter água nem estar quente, esperei serenamente os gritos e aproveitei para observar tudo o que podia o mais rápido que pudesse, uma vez apenas me lembro de ter chegado perto, a minha cabeça ficava abaixo do ferro, pus a mão na boca, sentia nisso satisfação, a saliva abundante e quente nos dedos, a luz era diferente no local onde estava o ferro e eu nunca podia ir e pensei que talvez a visse assim porque era a primeira vez que a estava a ver, uma vez apenas me lembro de ter chegado perto e ter pensado tens de te lembrar.

8 de novembro de 2013

O tempo passou. Não encontro o caminho entre mim e a cidade onde nasci. Tudo o que resta se transformou em memória, cuja trama trabalho ferozmente. E já nada importa. As feridas que pensei nunca sararem, nem cicatriz deixaram, liso como um deserto ficou o corpo.
Vem agora à tona aquilo que amei e sobretudo como amei. A memória delicada daquela certeza, uma única certeza: sair dali. Partir. Há uns dias vi o A. no supermercado, sabendo que o B. tinha morrido há uns dias. Tive vontade de me dirigir a ele e apertar-lhe a mão. E essa vontade tão independente e tão pura transtornou-me. Para explicar isso preciso de dizer: o sítio onde estava deixou de ser um sítio para passar a ser um instante. O incómodo trazido por essa vontade era violento como uma consciência que deixa de dar ordens.
Optar por a viver, o que seria? Uma loucura para os outros ou para mim? Contra todas as minhas forças desenterrou-se em mim um espectro, a lembrança de um homem que conheci, que amava e que sofria. Achei que sabia o que ele estava a sentir, ao mesmo tempo sabendo que não conheço aquela pessoa.
Nesse momento percebi que era eu quem estava viva nessa lembrança. O novelo de uma ligação que pensei ter morrido há muito tempo, vi-o pulsar. Esse amor que nos ligou em adolescentes e me fez esquecer. Quente, íntimo, duradouro. Escrever isto repugna-me.
Encontrei-me numa confusão enorme, sem conseguir fazer o que tinha ido fazer ao supermercado. Tinha a sensação de poder ficar ali retida, retida num pensamento, numa emoção. Dei voltas aos corredores mais perto do local onde ele se encontrava a falar com alguém. Vou ou não apertar-lhe a mão?, a pergunta repetia-se como um grito de socorro. Mais ninguém, absolutamente ninguém para além de nós conhece a história; a decisão, de me devolver o aperto de mão, pertencia-lhe apenas a ele. Seria possível voltar a encontrar esse coração adolescente que vive e sabe o que quer?
Eu ardia. O transtorno avolumava-se com a minha indecisão, fabricada pela incapacidade de distinguir entre a dúvida e o desejo de que ele pudesse retribuir-me um caloroso aperto de mão. Comecei a recordar outras coisas, como uma avalanche. Entre o princípio e o fim, vi-me diante de um enorme fosso temporal que ao invés de revelar mudança congelou tudo nos seus lugares. Incluindo a minha solidão.
Reparei que estava a caminhar repetidamente nos corredores dos iogurtes e gelados. Isso fez-me sorrir. Depois fui-me embora, sem vontade de reparar o irreparável com que me fiz.

1 de novembro de 2013

No África Minha há uma cena em que o Robert Redford diz à Meryl Streep que está por cima dele na cama: «Don't move.» Ela responde: «But I want to move.» Penso muitas vezes neste diálogo quando escrevo.

29 de outubro de 2013

*

Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.

Marguerite Yourcenar in Fogos.

28 de outubro de 2013

A casa em frente à minha casa de infância, um apartamento perto do centro da cidade, era uma grande vivenda com paredes amarelo torrado, um terraço alto, árvores, arbustos, canteiros de flores (buganvílias, brincos-de-princesa, camélias), chão de calçada portuguesa, bancos de pedra e uma catatua branca de crista amarelo claro. Ao lado dessa casa e em frente à minha, ficava uma enorme ladeira que eu e a minha irmã subíamos e descíamos todos os dias de mão dada para ir para a escola. Foi frente a essas paredes pintadas de amarelo torrado, quando um dia vinha de mão dada com o meu pai a descer a ladeira, que vi um preto pela primeira vez.
Era um homem muito alto, careca, com uma expressão de seriedade no rosto que me perturbou por não revelar aspereza ou sisudez mas sim beleza. Pensei: «É um rei.» Mais tarde, já na cama depois da história para adormecer que nunca me adormecia, procurei encontrar respostas nas minhas fantasias para o facto de trazer roupas normais e estar sozinho ao invés de trazer um séquito e uma princesa, com ele. Não encontrei nenhuma resposta e guardei até hoje a imagem do rosto dele. A primeira vez que vi um preto foi a primeira vez que vi um nobre.
Muitos anos após este acontecimento, provavelmente mais de 10 anos, a minha mãe reencontrou os pais, o tio e um irmão, cujo paradeiro perdeu ao emigrar e desconheceu ao longo dos primeiros 16 anos em Portugal. Portanto marcou-se uma viagem para o reencontro que seria também um encontro. A minha família materna tinha-se estabelecido numa aldeia no Norte, perto de Barcelos, com meia-dúzia de casas, muitas vacas, um cruzeiro no meio da estrada, uma loja onde havia também um telefone, uma igreja, muros de pedra e o silêncio mais belo que ouvi na minha vida. Antes de chegarmos a esta aldeia, já as pessoas nos sabiam dar indicações para a casa dos Oliveiras. Ao entrarmos na rua principal a minha mãe tremia como varas verdes e parecia ter o corpo de um passarinho. Aquela mulher muralha que me trazia tudo o que eu precisava e me tinha salvo da morte (esta história fica para outra história) era a filha de alguém, como eu. No final dessa rua estava a casa dos meus avós, uma casa com curral, tanque e fazenda e enquanto o meu pai entrava pelo caminho de terra, os meus avós e o meu tio (o irmão mais novo da minha mãe) assomaram à escadaria.
Foi a segunda vez que vi um preto. A minha avó materna era minhota. Tinha a pele transparente, os olhos azuis como mar e o cabelo tão branco que parecia neve. O meu tio era a pessoa mais alta que tinha visto, tão alto que dava a impressão de ir cair, com uma cor de pele igual à cor do café com leite. Tinha uma carapinha muito curta, olhos verdes, uma mão sem força e um discurso difícil de entender. O meu avô era um homem de estatura baixa, com o rosto e o nariz muito redondos e o cabelo grisalho. Foi como estar diante de um espelho bizarro: o meu avô era eu em homem, em velho e em preto. Tinha as mãos nos bolsos e não sabia para onde havia de olhar. Quando entrámos em casa, depois dos abraços, vi-o chorar. Não conseguia entender como é que ninguém nunca me havia dito que existia no mundo uma pessoa com quem eu era tão parecida. À medida que me fui apercebendo que uma parte da minha história me havia sido sonegada comecei a ficar muito zangada e em poucas horas a minha única paisagem era uma montanha de perguntas. De onde vinha eu se não vinha de onde tinha vindo há umas horas atrás? E quem era eu se o meu corpo descendia daqueles traços e daquela matéria? E talvez a mais angustiante de todas: quem era a minha mãe?
Naquele dia ficámos em casa a comer, a recuperar da viagem e a ver álbuns de fotografias muito antigos. Mais tarde o meu tio-avô, irmão da minha avó, que vivia umas casas adiante e fazia vinho verde, entrou pela casa dentro sem bater à porta e vendo a minha mãe à frente disse muito alto com os braços abertos e erguidos no ar: «Zita!», que era a alcunha da minha mãe em Benguela. Depois soltou uma gargalhada tal que fiquei sem saber se havia de ter medo. Estava toda estilhaçada naquela casa. Aquele era o meu riso.