29 de outubro de 2013

*

Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.

Marguerite Yourcenar in Fogos.

28 de outubro de 2013

A casa em frente à minha casa de infância, um apartamento perto do centro da cidade, era uma grande vivenda com paredes amarelo torrado, um terraço alto, árvores, arbustos, canteiros de flores (buganvílias, brincos-de-princesa, camélias), chão de calçada portuguesa, bancos de pedra e uma catatua branca de crista amarelo claro. Ao lado dessa casa e em frente à minha, ficava uma enorme ladeira que eu e a minha irmã subíamos e descíamos todos os dias de mão dada para ir para a escola. Foi frente a essas paredes pintadas de amarelo torrado, quando um dia vinha de mão dada com o meu pai a descer a ladeira, que vi um preto pela primeira vez.
Era um homem muito alto, careca, com uma expressão de seriedade no rosto que me perturbou por não revelar aspereza ou sisudez mas sim beleza. Pensei: «É um rei.» Mais tarde, já na cama depois da história para adormecer que nunca me adormecia, procurei encontrar respostas nas minhas fantasias para o facto de trazer roupas normais e estar sozinho ao invés de trazer um séquito e uma princesa, com ele. Não encontrei nenhuma resposta e guardei até hoje a imagem do rosto dele. A primeira vez que vi um preto foi a primeira vez que vi um nobre.
Muitos anos após este acontecimento, provavelmente mais de 10 anos, a minha mãe reencontrou os pais, o tio e um irmão, cujo paradeiro perdeu ao emigrar e desconheceu ao longo dos primeiros 16 anos em Portugal. Portanto marcou-se uma viagem para o reencontro que seria também um encontro. A minha família materna tinha-se estabelecido numa aldeia no Norte, perto de Barcelos, com meia-dúzia de casas, muitas vacas, um cruzeiro no meio da estrada, uma loja onde havia também um telefone, uma igreja, muros de pedra e o silêncio mais belo que ouvi na minha vida. Antes de chegarmos a esta aldeia, já as pessoas nos sabiam dar indicações para a casa dos Oliveiras. Ao entrarmos na rua principal a minha mãe tremia como varas verdes e parecia ter o corpo de um passarinho. Aquela mulher muralha que me trazia tudo o que eu precisava e me tinha salvo da morte (esta história fica para outra história) era a filha de alguém, como eu. No final dessa rua estava a casa dos meus avós, uma casa com curral, tanque e fazenda e enquanto o meu pai entrava pelo caminho de terra, os meus avós e o meu tio (o irmão mais novo da minha mãe) assomaram à escadaria.
Foi a segunda vez que vi um preto. A minha avó materna era minhota. Tinha a pele transparente, os olhos azuis como mar e o cabelo tão branco que parecia neve. O meu tio era a pessoa mais alta que tinha visto, tão alto que dava a impressão de ir cair, com uma cor de pele igual à cor do café com leite. Tinha uma carapinha muito curta, olhos verdes, uma mão sem força e um discurso difícil de entender. O meu avô era um homem de estatura baixa, com o rosto e o nariz muito redondos e o cabelo grisalho. Foi como estar diante de um espelho bizarro: o meu avô era eu em homem, em velho e em preto. Tinha as mãos nos bolsos e não sabia para onde havia de olhar. Quando entrámos em casa, depois dos abraços, vi-o chorar. Não conseguia entender como é que ninguém nunca me havia dito que existia no mundo uma pessoa com quem eu era tão parecida. À medida que me fui apercebendo que uma parte da minha história me havia sido sonegada comecei a ficar muito zangada e em poucas horas a minha única paisagem era uma montanha de perguntas. De onde vinha eu se não vinha de onde tinha vindo há umas horas atrás? E quem era eu se o meu corpo descendia daqueles traços e daquela matéria? E talvez a mais angustiante de todas: quem era a minha mãe?
Naquele dia ficámos em casa a comer, a recuperar da viagem e a ver álbuns de fotografias muito antigos. Mais tarde o meu tio-avô, irmão da minha avó, que vivia umas casas adiante e fazia vinho verde, entrou pela casa dentro sem bater à porta e vendo a minha mãe à frente disse muito alto com os braços abertos e erguidos no ar: «Zita!», que era a alcunha da minha mãe em Benguela. Depois soltou uma gargalhada tal que fiquei sem saber se havia de ter medo. Estava toda estilhaçada naquela casa. Aquele era o meu riso.

25 de outubro de 2013

Pela terceira (ou será já a quarta...?) noite consecutiva sonho que a meio do sonho olho para as minhas mãos que estão a ficar cobertas de uma película fina de pele a cair, uma espécie de rede muito frágil que a pouco e pouco está a adensar-se e a fortalecer-se. Como a cor da pele que cai é o branco, a cor da pele das minhas mãos está a desaparecer e a certa altura já só se vê dentro dos pequenos alvéolos que rapidamente também desaparecerão.
O que acontece noite após noite nestes sonhos (não é sempre o mesmo, apenas as mãos se repetem) é que a certa altura alguém ao meu lado repara no que está a acontecer e me avisa. Não sou surpreendida, sei o que está a acontecer apesar de não saber porquê mas não quero ter de esconder as mãos, o que também suspeito que serei obrigada a fazer a dado ponto, caso as mãos fiquem totalmente cobertas de pele seca. Forço a pessoa a voltar a olhar para o quer que estejamos a fazer nesse momento tocando-lhe no braço mais próximo e dizendo «Sim sim, já sei, não te preocupes» e mais tarde é o meu próprio pudor que acaba por levar a avante («É hora» penso), forçando-me a escondê-las nos bolsos do casaco enquanto caminho numa rua cheia de gente. Julgo que coro um pouco quando finalmente as escondo, o que é uma sensação estranhíssima e me leva a confirmar se quem julgo ser eu sou realmente eu, tão raro é que eu core. Tenho vários pensamentos contraditórios, oscilo entre a resignação ao recato e a liberdade que haveria em manter-me despreocupada com as minhas mãos. Entre eles começa a chegar uma sensação de conforto e segurança por ter sido capaz de proteger uma coisa tão delicada de cuja beleza todos duvidam. Não sei o que vai acontecer, talvez me mate, mas está a existir. E eu quero ver o que vai ser.

Quando subitamente me recordo disto na vigília estou sentada à secretária e, acto quase contínuo, tenho a necessidade de o escrever. Um par de horas mais tarde, quando acabei de me vestir e vou por creme nas mãos, o meu coração estremece: não tenho a certeza de ter sido um sonho.

21 de outubro de 2013

Futuro

Pousou uma borboleta
sobre uma das pestanas
de um elefante.
Março I

Entro no recinto de terra batida de braço dado com a minha mãe. Estou a olhar em frente, vejo primeiro uma feira, mercadores indianos e máquinas de algodão doce, logo depois vejo os carrosséis e atrás os carrinhos de choque. Eu tinha 5, 8, 10, 11 anos. É algures entre um e outro vislumbre que eu me transformo – mas em quê, se aquilo em que eu me transformo sou eu própria. Não sei dizer. O sentimento de lascívia é tão feroz que tenho a tentação de soltar o braço do braço da minha mãe (chego a movê-lo mas detenho-me).
Os feirantes gritam uns com os outros debaixo da música demasiado alta dos carrosséis, não falam com os visitantes. Tudo me atrai. Os carrosséis giram a uma velocidade assustadora. Olho em volta o espectáculo onde acabo de entrar. Um dos carrosséis tem uns assentos que sobem e descem rapidamente girando em volta ao mesmo tempo, cada um leva duas pessoas. As pessoas riem com as cabeças atiradas para trás e os cabelos a serem empurrados pela força do movimento. Lembro-me que andei nele. Uma viagem enfadonha, em que o medo, a vertigem e o enjoo deram lugar a uma angústia insuportável de que não consegui livrar-me nos dias a seguir. Andei uma vez em todos sempre com o mesmo resultado. Nos anos seguintes, sempre que a Feira de Março chegava à cidade, esquivava-me e andava apenas num para justificar a minha ida e disfarçar a minha vontade de falar com os feirantes, a única coisa que me interessava. Entrava numa chávena de chá que rodava sobre si própria enquanto o carrossel girava e serpenteava acima e abaixo num tapete de tábuas cheio de cavalos, Mickey's, comboios, patos. Gostava de ir sozinha. Solto o braço da minha mãe e dirijo-me a esse carrossel. Quero entrar mais fundo nas minhas recordações, quero voltar a entrar na chávena, voltar a entrar em mim. Vejo-a, subo para pisar pelo menos as tábuas brancas no chão. Já sinto os olhares sobre mim, tenho de regressar à minha mãe não a posso envergonhar. O meu esforço para não chamar a atenção é hercúleo, tal como antigamente. A garganta aperta-se-me, chega-me aos ouvidos um arrepio.
Reparo agora que desde que voltei a entrar neste recinto uma das coisas que mais me atrai é o pó. Tudo aqui dentro está imerso no pó que os nossos sapatos levantam, um pó seco, leve e branco. Vendem-se voltas, bilhetes, fichas, algodão doce, pipocas, farturas, e qualquer outra coisa que raramente consigo definir.
Estamos a sair da feira, as lembranças sucedem-se como imagens de um filme e eu começo à procura. Aí estão elas as casas dos feirantes. Casas sobre rodas. Casas onde desejei entrar.


Março II

Piso a lama do recinto da feira. Enquanto observo os sapatos enterrarem-se (primeiro prazer), penso na ironia desta feira vir à cidade precisamente no mês de Março. De um lado, estas tendas cheias de perigos (não falem com os feirantes, recomendação), lama, notas velhas de mão em mão, velocidade, do outro lado a chegada da Primavera, pujante e luminosa.
Assim que chego abandono-me como se tivesse acabado de chegar a uma solidão desejada. A feira dá-me a possibilidade de me iludir: cheguei ao futuro, já não vivo nesta cidade. Passo primeiro pelos mercadores de bugigangas, carrinhos de algodão doce e maçãs do amor, não paro. Tenho uma saia às riscas e uma blusa azul, o cabelo apanhado de lado. Ao meu lado de mão dada comigo vem a minha irmã, mais nova um ano. «Combinaste com alguém?». Mas a resposta dela não é a que espero «Hoje ninguém podia vir.». Faço a pergunta que se segue «Quanto dinheiro tens?». Contamos as moedas, não dará para muito mas sei que ela vai querer andar nos carrinhos de choque. Eu tenho medo, fico cá fora. Em torno da pista, sentados nos bancos, estão os rapazes. Vêm das aldeias e das outras escolas; há também os feirantes que nunca estão parados e são os únicos a circular dentro e fora da pista, gritando uns com os outros por causa do barulho das máquinas e da música e exibindo-se, com a pele queimada. É esse o meu momento. Quero vê-los exibir-se. Não vejo nada de belo em todo o recinto mas partilho com eles a animalidade em mim escondida e neles altiva e admiro-os.
Compramos duas fichas para o carrossel e entramos numa chávena de chá que rodopia sobre si própria. Ao sairmos a minha irmã encontra uma amiga e corre para fora do carrossel. Eu dou a volta para sair pelas escadas e aproveito para ir pela zona onde estão as máquinas, que fazem tudo funcionar. É este o meu local preferido. Podia vir à feira só para ouvir este som. Agachado na lama debaixo das tábuas brancas do carrossel encontro um rapaz sujo que fala com um pequeno cão, amarrado com uma corda pelo pescoço. Olha para mim com indiferença. Volta as costas e segue caminho por entre as carrinhas, eu congelo. Sigo-o com o olhar, perco-o, volto a encontrá-lo. Não quero voltar para casa.

19 de outubro de 2013

Desde que abri os olhos são incomparavelmente em maior número as coisas que não percebo do que aquelas que percebo e perceber não tem a ver com identificação mas sim com uma certa impassibilidade, que eu penso ser um termo mais justo do que serenidade, sendo que seria pueril acreditar que só se percebe aquilo de que se gosta. Depois há as que percebo com esforço, a seguir as que percebo com paixão e a seguir as que só percebo, de forma tão imediata que me apetece chamar de natural, tal como é natural respirar e beber água. E suponho que funcionamos todos mais ou menos do mesmo modo, com águas de fontes diferentes, de acordo com os nossos padrões e com as idiossincrasias que não pudermos por de parte.
Por exemplo uma coisa que me diverte muito sempre que sai um filme do David Lynch são as conversas das pessoas sobre o seu significado. Na internet aparecem logo listas intermináveis de fóruns em várias línguas onde se discute cada cena, se fazem investigações, comparações, algumas bastantes interessantes, se propõem análises fantasiosas e extra-humanas (isto existe? Deve existir). Se bem que confesso, também me cansa rapidamente. Porque aquilo que eu vejo, pelo contrário, é da ordem da revelação, que é o que não precisa de explicações. Como um sonho a ser sonhado por muitos. O que me traz ao assunto que me interessa.
Há uma xilogravura  de Katsushika Hokusai
de cerca de 1820 chamada «O Sonho da Mulher do Pescador» que representa uma mulher em êxtase sexual provocado por dois polvos. Existem tantas interpretações sobre ela quantas forem as cabeças a pensar e eu conheço muito poucas. Tive conhecimento de algumas numa fase em que já conhecia a imagem há muito tempo e, tal como acontece com os filmes do Lynch, fui surpreendida pela intensa divergência de opiniões que causa, porque nunca me senti questionada por ela. Tenho tantas questões sobre esta imagem como sobre os desenhos de gatos do mesmo pintor, que são sublimes. Para mim a imagem é transparente: ela parou de pensar.
O que é o prazer? O que é o prazer para uma mulher? Como é que uma mulher tem prazer? Quando se sente validada. Fazer a cama e dobrar a roupa seca conta (não duvidem) mas não conta tanto quanto identificar quem está atrás dos véus. Diz-se que para ter prazer as mulheres precisam de se sentir seguras. Concordo. Mas a segurança não é sobre casas quentes no Inverno e passeios no Verão. A segurança é sobre atenção, cuidado (palavra rara), respeito e tempo. A segurança é sobre reconhecimento. Não reconhecimento do seu valor ou da sua importância (blá, blá, blá) mas reconhecimento da pessoa que se é. A roupa seca e a cama desfeita são tarefas - e chatas, nunca acreditei em ninguém que me dissesse que gostava de o fazer -, e o valor das pessoas numa sociedade pode ser medido pelo que se 'faz' mas para quem é que aquela pessoa 'existe'?
Uma partilha, qualquer partilha, é uma existência partilhada. Nada a menos e nada a mais. Por outras palavras, partilhar não é ser tolerado é ser celebrado.
E é escolher não ignorar da mesma forma que é escolher não ser ignorado. A mulher do pescador abandona-se ao prazer puro porque tudo nela é visto e porque aquele que vê se assume visto. O ver e o ser visto não são unilaterais. Havia alguém que dizia que ver é iluminar com o olhar. É isso. Se, como eu acho, ela parou de pensar, é porque alguém chegou ao lugar onde ela está, atrás dos arbustos com espinhos, e a tocou. Só que alguém teve de abrir a porta da torre. As mulheres são seres silenciosos mas existir em silêncio não é o mesmo que não existir. E a grande maioria das mulheres desiste do seu próprio prazer porque ele não é obtido numa noite de sexo nem com o companheiro de anos nem com o amante de uma noite. O prazer de uma mulher é uma coisa vasta que se constrói 24h sobre 24h, 365 dias por ano. Não acontece com um estalar de dedos. A boa notícia é que a parte técnica aprende-se.
Dito isto assim mal dito, desde que percebi que a imagem causa reacções fortes nas pessoas que a tenho usado para as descobrir. E tem sido muito revelador ver o asco, o sobressalto ou a perturbação que na maioria das vezes causa nos homens. As mulheres tentam esconder a rapidez com que começam a estudar a volúpia.

18 de outubro de 2013

Não é porque não se possa falar da saudade que evitamos fazê-lo. Não é tão pouco porque a dilaceração que ela traz ao corpo seja insuportável ao ponto de não a podermos nomear. Até a memória dos acontecimentos mais monstruosos encerra a alegria primitiva que nos trouxe até ao momento em que os lembramos. É isso que nos causa pudor. É isso que é insuportável.
Coisas que não se podem possuir:
  • o vento
  • bolas de sabão
  • os fios da teia de aranha
  • o calor da tua boca
  • água
  • o traço do desenho

17 de outubro de 2013

O dia em que cheguei a Lisboa também era branco. Era um fim de tarde de Novembro e eu não sabia onde estava. Desfiz a mala a correr e saí pela primeira vez, ansiosa e anestesiada. Queria ir até ao cruzamento com mais trânsito e ficar aí para ver como o dia mudava até ser noite, como eram as pessoas, saber se me perdia. Quando tinha feito cinco metros de rua dei de caras com o deus grego que eu observava ao longe na praia da Nazaré todos os verões.
O deus grego não era grego. Era um rapaz loiro de olhos muito azuis mais ou menos da minha altura cujos contornos poderiam ter sido esculpidos em mármore. Eu ficava siderada assim que ele aparecia na praia. Começava a tremer e de início tinha de ficar muito quieta. Penso que talvez fosse isso que eu temia nele — e eu temia-o, pois o nosso encontro deixava-me em silêncio. Eu achava que isso lhe dava um poder colossal sobre mim, que ele nunca poderia descobrir.
Portanto eu estava há um par de horas em Lisboa e o deus grego descia o passeio na minha direcção. Fiquei atónita, imóvel, o meu coração fez tic e depois já não fez tac. Julguei que era uma contingência tremenda, que ele passaria por mim sem me reconhecer. Mas não, o deus grego dirigiu-se a mim com um grande sorriso, abraçou-me e tcharam!: sabia o meu nome. Eu não sabia o dele.
Perguntou-me o que é que eu estava a fazer ali, se tinha vindo estudar para Lisboa (respondi com um sim) explicou que o pai dele trabalhava cá, era advogado, que os pais eram divorciados e que até ali ele tinha vivido com a mãe na Nazaré mas que agora que tinha vindo estudar ía ficar com o pai, só que ainda não sabia dizer se estava contente com isso ou não. Falava muito rápido, com um grande sorriso, as mãos tocaram-me nos braços várias vezes. Eu fiquei sempre na mesma posição e ao que me lembro com os olhos mais arregalados do mundo. Pensava: «Ele está feliz por me encontrar. Ele sabe o meu nome. Ele não só é bonito como está a estudar Sociologia.»
Querendo continuar tranquilamente a conversa, o deus grego convidou-me para tomar um café. Foi como se me tivessem dado um murro na cara. Senti-me desesperar na minha incredulidade. Agora era um fogo de artifício, com todo o seu ruído, que não me deixava pensar. «Ele está-te a convidar, ele quer passar tempo contigo.» Então tomei uma decisão com a plena consciência de estar a escolher entre dois caminhos na vida, uma coisa que não é todos os dias que acontece. Olhei directamente para os olhos dele, respondi «Não», voltei as costas e comecei a andar.
No segundo a seguir comecei a sentir a anestesia passar. As minhas pernas tremiam mas já não era por causa dele. Tive pena da tristeza que vi sobre o seu rosto, uma sombra assustadora que o envolveu inteiramente. Quis encontrar uma explicação para o que tinha acabado de fazer e não a tinha. Senti que Lisboa era uma cidade sem refúgios mas não sabia que qualidade havia a identificar nisso. A única coisa em que conseguia pensar era que ele vinha do passado e que, deus grego ou não, o meu passado terminava ali. Nunca o voltei a encontrar.

13 de outubro de 2013

Barcos às dezenas no rio, pescadores, bicicletas, cães, carros, camiões, motas, aviões, comboios, gaivotas, música no café, filmes, conversas. Distraio-me com surpresa do livro por um som longínquo, de todos o mais comum: o restolhar cristalino de um monte de folhas secas que atribuo rapidamente ao vento e que algumas horas mais tarde descubro ser o esconderijo de uma lagartixa. Aconteceu apenas uma vez.

10 de outubro de 2013

Em 1998 fui para Paris onde vivi o que restava desse ano e os 3 anos seguintes. Casei com um judeu filho de pai córsego e mãe nascida em Marrocos, cuja avó, viúva de um prospector, vivia no 16ème e cuja tia tinha desistido do seu laboratório premiado de astrofísica para criar cabras e fazer queijo numa quinta no sul. Trabalhei e estudei em Paris e tive a sorte descomunal de viajar. Conheci França de uma ponta a outra à custa de muito enjoo no carro. Foi lá que vi uma montanha pela primeira vez. Foi lá que vi um transexual pela primeira vez. O francês tornou-se a minha segunda língua para descobrir que todos os sonhos em francês são pesadelos. Quando chegou a altura de decidir levei seis meses para ter a certeza de que queria regressar a Portugal.
De tudo o que vivi, de todos os rostos que conheci, todos os livros que trouxe, todas as histórias (e intensas que foram) que se acumularam, aquilo que recordo com mais vivacidade, e também com mais emoção, são os meus passeios solitários de dias inteiros pela cidade.

8 de outubro de 2013

Nenhum ser é possível onde a palavra falha.

Stefan George
Começo a ler Walter Benjamin. Esperei o tempo possível porque gosto de ler em silêncio. É difícil descrever o que se encontra quando há encontro. Estou ainda no início, talvez as palavras surjam entretanto, porque quero dizer: a descrição é a resposta que me resta a um amor que está apenas a nascer. Hoje, enquanto lia, ri. Um riso cristalino, profundo, comovido. O riso mais raro que quase, quase, quase ninguém consegue ouvir. 
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que uma pessoa o ouviu. Foi numa aula de filosofia no 12º ano, a primeira em que falávamos de Kant e lemos um parágrafo da Crítica da Razão Pura, não me lembro qual. O professor lia, os alunos estavam debruçados sobre os livros a acompanhar a leitura. Depois do ponto final, dei uma grande gargalhada. Uma gargalhada generosa, sem tirar os olhos do texto de que já procurava o início para reler. Como não se tratava de uma anedota, os meus colegas riram também e disseram que eu era mesmo tonta. Já o professor, ficou muito surpreendido. Olhou para mim com olhos de quem também queria poder rir assim e disse: «Se ris é porque percebeste» e continuou a dar a aula. Foi quando também percebi, ou quando pensei a primeira vez, naquele, meu próprio, riso.


*Léo Férré, On est pas sérieux quand on a dix-sept ans.

6 de outubro de 2013

0. Um dia uma parte do corpo começa a doer ao levantar, a frase no livro que gostámos tanto de ler enterrou-se não se sabe onde, pensamos que temos de correr para apanhar aquele autocarro e abrandamos o passo. Enquanto esses eventos não se destacam ainda dos outros, até quando intocados, descobrimos através deles que começámos a envelhecer.



1. Em menos de 24h dois acontecimentos levam-me à amarga constatação que nunca vi um grão de trigo. Eu que quero ver todas as montanhas do mundo, que gostava de ver um deserto de gelo e um de fogo, que quero ler quanto conseguir, que quero aprender outra língua e a tocar um instrumento antes de morrer e que aprendi a nadar no ano passado só para saber o que era isso, nunca vi um grão de trigo. Quase me envergonho. Não passo do quase porque de facto ainda não morri e sei onde há campos de trigo.



2. Sei que um dia destes vou fazer alguém passar vergonha no cinema. É a segunda vez que me acontece. Estou a ver os pescadores e a pesca no écrã, cânticos, força, água, sangue, peles queimadas. No regresso da faina, um grupo em pé em cima de um dos barcos acena à câmara. Suprimo a tempo o meu acenar de resposta.



3. Num dos barcos os sons raptam-me. Gaivotas, cordas a passar por metal, metal a girar sobre metal, metal a chocalhar, um motor. Sou chamada e não sei onde estou. 



4. Os pastores fazem queijo de cabra. Sinto um nó atar-se na alma e renego todos os supermercados onde tenho posto os pés. Prometo a mim mesma que farei uma refeição de queijo de cabra, pão caseiro, uvas brancas, nozes e vinho. 



5. Num dos filmes vejo uma figueira só com folhas novas. Pergunto-me se isso ainda existe.



6. É uma festa para comemorar o início da Primavera, cortam uma árvore e tiram-lhe a casca no cimo de um monte para a trazer para baixo para a aldeia e voltar a erguê-la. As mulheres esperam os homens no vale com um piquenique. Entre as crianças há uma que não se distrai com a câmara, olha para dentro a comer um naco de pão. Está a pensar e eu penso que talvez ela pense em cinema.



7. No fim da festa nenhum som. Esse som que tantas insónias me trouxe.



O Mundo Perdido de Vittorio De Seta (Curtas-metragens de Vittorio De Seta 1954-1959), hoje na Cinemateca Portuguesa.

29 de setembro de 2013

O que me interessa na linguagem - qualquer forma de linguagem - é a sua relação com o silêncio. O que me interessa no silêncio é a ausência de relação que o caracteriza e que dá forma em nós ao desejo de dizer. Talvez não haja música sem ouvinte. Mas o que há de mais profundo é silêncio, que não procede nem prossegue, não existe nem é nada porquanto o que é não tem relação com o tempo. E no entanto, não sei como nem onde, está em mim.

17 de setembro de 2013

O meu primeiro beijo foi roubado. Ele chamava-se Ivo. Era um rapaz de aparência rude, pequeno, com orelhas grandes e cheio de sardas. Achava-o muito bruto e como ele deitava perdigotos nunca brincava com ele, aliás, evitava estar perto dele. Mas como as crianças e os pássaros andam sempre em bando, fui como toda a gente à festa de aniversário dele. Levava o meu vestido de fazenda cor-de-rosa, a estrear, que eu tinha ajudado a desenhar, e um laço no cabelo.
O Ivo morava num castelo. Não estou a inventar nem a ser metafórica, o Ivo morava num castelo com masmorras e torres e portas pesadas de madeira, paredes e chão de pedra, um poço, alçapões, lareiras do tamanho de casas, num sítio onde demorámos muito tempo a chegar. Com o olho à janela fui perdendo de vista as casas e quando chegámos a paisagem tinha o esplendor inóspito dos sobreiros que parecem reafirmar com prepotência o vazio em redor. Ao sair do carro, quando vi o castelo pela primeira vez, parei de pensar.
À porta para nos receber estava uma mulher grande, alta, de formas exuberantes, com o cabelo muito loiro (e como era a primeira vez que estava a ver cabelos pintados pensei Porque é que o Ivo não é loiro) e muito comprido, vestida com roupas modernas, os lábios pintados de vermelho, os olhos de azul, com pulseiras e colares, um cigarro sempre na mão, e cuja voz era demasiado grossa e rouca para uma mulher. Era a mulher mais bela que tinha visto. Parecia irreal. Era hipnotizante. Onde ela estava, o ar era raro. No interior, uma sala com sofás de veludo verde. Ela, sorrindo efusivamente, dava a boas vindas aos pais e dizia às crianças que tudo era permitido.
Brincámos até ser noite. Subimos à torre para ver o mundo, jogámos às escondidas na masmorra. Um caçador mostrou-nos as armas. Comemos tantos doces que julguei não voltar a ter fome. E vi o Ivo andar de cavalo, o que antes de significar que eu estava doida quase fez dele um rapaz giro.
À hora de jantar fomos cantar os parabéns. Toda a gente se reuniu à volta da mesa e eu estranhei ver a minha mãe ao lado da mulher loira. Muito composta e bem comportada, fiquei ao fundo da mesa, do lado oposto ao bolo e portanto oposto também ao lugar do Ivo. E eis que a minha mãe me chama para ir para perto dele. Disse que não o mais discretamente possível com a cabeça. Disse que não com a cabeça e com os olhos. Disse que não com a cabeça, com os olhos e com o corpo. E fui.
Enquanto cantávamos os parabéns, fiquei ao lado dele a sentir-me uma jarra, uma jarra contrariada, com a luz das velas a iluminar a zanga e o embaraço que eu queria esconder. Foram segundos até que no momento de apagar as velas, em vez de as apagar, o Ivo se volta para mim e me dá um beijo na boca. Afastei-o com todas as minhas forças, olhei-o nos olhos, gritei não e corri dali para fora. Ainda hoje me lembro da humidade. E não é do castelo.
A nenhuma arte pode ser dada primazia sobre outra. Apenas se privilegia por meio da maior ou menor mestria que temos de uma determinada arte. O sentido da experiência é ontológico.

16 de setembro de 2013

Há dois tipos de crise: aquela que procede da angústia e é uma explosão de revolta pela constatação de que as coisas são irrevogavelmente distantes da sua origem e aquela que é trazida pela luz, a claridade ou a dolorosa ausência de sombras das imagens que concede acesso ao horror. Nenhuma crise é mais terrível do que o amor puro.

15 de setembro de 2013

Eu estava sozinha mas eram poucos os momentos em que me permitia ficar nesse encontro com a minha própria amplitude, sem acrescentar nem ocultar nada para poder parecer menos isolada ou menos diferente. Havia nisso um sabor supremo. Uma serenidade. E eu tinha um ritual para o saborear.
No meu quarto em silêncio, ficava a escutar atentamente uma linguagem que por vezes não compreendia. Encontrava através dela uma mulher a nascer mas a grande maioria das imagens permaneciam misteriosas. Sem as distinguir suficientemente, não sabia que qualidade do assombro existia nela. Interrogava-me se, como num livro de crianças para pintar, teria de ser eu com o tempo a definir as suas cores. Ou se simplesmente um dia seria ela a engolir-me. Certo é que queria apoderar-me daquela música. Queria dominá-la, que é o mesmo que dizer que queria poder ouvir tudo, sem véus, sem enigmas, e traduzi-la.
Descia à cidade depois do jantar mas não ia directamente para a praça encontrar os amigos que me esperavam. Fazia um desvio.
Entrava nas ruas escuras, onde era suposto não ir. O caminho era mais longo do que o habitual e o movimento na rua era diferente. Por vezes, ninguém. O nevoeiro subindo do rio, o bafo da minha boca, sons de pequenas pedras a rolar, animais que passavam. Outras vezes desconhecidos. Pessoas mais velhas que eu encostadas à parede de uma casa a fumar ou sentadas nos degraus de um edifício. Conversas que se interrompiam quando eu passava. Olhos. Uma liberdade virgem que a esforço não me fazia sorrir.
Entrava no salão de jogos, o maior, cheio de fumo, muito barulho, onde iam as pessoas mais velhas e portanto eu não podia entrar. A vibração mudava assim que eu me aproximava e aqueles que estavam à entrada me viam. Dirigia-me à Jukebox e punha a tocar o Wild Thing do Jimi Hendrix. Enquanto a música tocava eu dançava, cantava e sorria quanto fosse a minha vontade. Vivia aquilo que estava a viver, tudo o que em mim estava a viver. Sobretudo o indecifrável.
Entrámos finalmente no jardim. Nunca lá tinha estado, era enorme. Começámos a descer a colina da entrada e observei o horizonte verde onde grupos de crianças corriam sobre o relvado, várias pessoas se reuniam em redor de toalhas estendidas sobre a terra, havia jogos de raquetes, namorados escondidos atrás de arbustos ou abraçados ao sol, bandos de pássaros chilreavam e levantavam voo da copa das árvores. Enquanto os amigos com quem estava começavam a escolher um lugar para ficarmos, notei ao longe um engenho colorido que nunca tinha visto. Parecia ser um carrossel. Havia contudo naquele carrossel qualquer coisa de extraordinário que me atraía inexoravelmente. A partir do momento em que o vi, longínquo, ao fundo do jardim, não consegui mais desviar dele a minha atenção. Ao contrário, chamei os meus amigos. Procurei dizer-lhes como estava ali à nossa frente, a poucos passos de nós, a coisa mais assombrosa que alguma vez tinha visto e que devíamos ir lá. Mas nenhum deles olhou para o engenho ou para mim. Portanto comecei a atravessar o jardim em direcção a ele.

Será difícil descrever esta máquina. Na sua base estava o casco de um grande barco em madeira. O mastro principal era cruzado por uma verga de igual tamanho e em cujas extremidades rodavam quatro cascos de embarcações, igualmente de madeira, duas de cada lado. Com o interior encostado ao interior do outro casco, faziam lembrar nozes, um pouco mais pequenas que o barco de madeira na base da estrutura. Das extremidades da verga ao topo do mastro, pendia uma corda com bandeirolas coloridas, semelhantes às bandeiras tibetanas de orações. Chamo-lhe máquina ou carrossel porque, para além de parecer haver alguém a vigiar, à excepção da base e do mastro principal, tudo estava em movimento. As cascas de noz giravam na horizontal e na vertical, rodando uma sobre a outra, em simultâneo, o mesmo movimento de cada lado, e a verga rodava a grande velocidade. Era um movimento impossível. Tinha de perceber como funcionava e para que servia.

Depois de caminhar durante muito tempo, alcancei o fim do jardim onde encontrei um lago dentro de uma caverna. Para ver a máquina teria de o atravessar mas não sabia como pois a única coisa que os meus olhos podiam avistar ao redor era pedra. Hesitei durante alguns minutos, tentando encontrar uma solução. Não sabia nadar e seja como for não sei se poderia nadar aquela distância. Do outro lado do lago, a máquina continuava a girar. Distinguia-se agora melhor a pessoa que se encontrava perto da base, caminhando de um lado para o outro lentamente. Não havia mais ninguém para além dele perto da máquina. Como um druida, tinha um capuz e uma espécie de cajado, mais ou menos da sua altura. Podia ver-se a sua longa barba branca. Já me tinha visto.
Olhei para a máquina. Precisava de a ver de perto. As águas negras do lago ocultavam a sua profundidade e espelhavam-se no tecto da gruta, reflexos verdes, azuis, amarelos, o mundo negro, onde as aparências deixam de ser, começava ali. Olhei para os meus pés perto da água. Ondas minúsculas batiam na rocha. Decido avançar, coloco um pé sobre a água.

Mal me preparo para dar um passo sobre a água fico nua. Estou neste momento em pé dentro de uma pequena embarcação que avança a remos. O remador coloca uma capa negra sobre o meu corpo imóvel. O druida está voltado para mim e espera-me.

Chegamos ao outro lado do lago. A embarcação pára para me deixar sair e volta a partir. Estou finalmente diante dele. É colossal. O movimento dos cascos é prodigioso. Estou siderada, penso, tento pensar mas não consigo encontrar um correspondente em nada que tenha visto ou ouvido relatar. Estou também a ignorar o druida, que se mantém num dos lados da máquina e me observa durante alguns minutos até começar a falar:

- O que vieste aqui fazer?
- Vim para ver.

Menti. Não sei porquê. Na verdade eu tinha feito a viagem para entrar na máquina e experimentar o seu movimento. Lembrei-me que estava nua por baixo do manto negro e tive medo. Queria perguntar-lhe qual era a moeda que tinha de pagar para poder dar uma volta no carrossel mas o meu ego causava-me embaraço. Ele continuou a falar.

- Vieste para dizer a palavra.
- Qual palavra?
- Tu sabes a palavra.

Então o druida removeu o seu capuz. Era um velho de barbas brancas que me olhava com o meu próprio rosto. O meu rosto masculino e envelhecido. Havia uma grande atração entre nós, que eu talvez não possa explicar. Ainda em choque, senti que poderia morrer às mãos dele. A sua mão ergueu-se com uma grande espada e quando me cortou o pescoço, a luz que emanei devolveu-me à vigília. Acordei a sorrir.