Prenda do R., poema do António Reis.
27 de novembro de 2017
26 de novembro de 2017
a verdade, embora improvável, é a verdade deste momento e — tenho mesmo de o escrever — inocente, fala silenciosamente. o mundo tal como ele é, é lúdico, inapagável, um tanto ameaçador. o melhor seria mesmo inventar um alfabeto, ainda que destinado a perder-se em todo o seu mistério, que celebrasse por momentos todas as contradições. como um transe, através de todas as metamorfoses, ambíguas e arbitrárias, a embriaguez seria ainda maior e mais pungente, o único bem da vida, enquanto à superfície a vida normal, não pensada e prosaica, como uma angústia diligente e firme, se organizaria como um teatro.
24 de novembro de 2017
21 de novembro de 2017
Le monde est excité le monde est exalté
Comme au festin du plus grand sacrifice
Comme en montant les marches du printemps
*
Moi seul imperturbable
En nouveau-né qui n’a pas encore… ri
Moi seul je vais errant
Sans but précis en homme sans logis
*
Si chacun tient sa richesse
Je parais seul démuni
J’ai l’esprit d’un ignorant
Celui-ci est bien trop lent
*
Si chacun est clairvoyant
Seul je reste obscurité
*
Si chacun est perspicace
Moi seul ai l’esprit voguant
À flotter comme la mer
À souffler comme le vent
*
Si chacun tend vers son but
Moi seul ai l’esprit confus
*
Tel celui d’un paysan
De tout un chacun moi seul diffère
Car je tiens bien à téter ma mère
Lao-Tseu, Tao-Tö King.
Comme au festin du plus grand sacrifice
Comme en montant les marches du printemps
*
Moi seul imperturbable
En nouveau-né qui n’a pas encore… ri
Moi seul je vais errant
Sans but précis en homme sans logis
*
Si chacun tient sa richesse
Je parais seul démuni
J’ai l’esprit d’un ignorant
Celui-ci est bien trop lent
*
Si chacun est clairvoyant
Seul je reste obscurité
*
Si chacun est perspicace
Moi seul ai l’esprit voguant
À flotter comme la mer
À souffler comme le vent
*
Si chacun tend vers son but
Moi seul ai l’esprit confus
*
Tel celui d’un paysan
De tout un chacun moi seul diffère
Car je tiens bien à téter ma mère
Lao-Tseu, Tao-Tö King.
eu devia ter sido cantora. penso nisto sempre que oiço música do século XVII para trás (a esticar para poder incluir Bach e Purcell), embora não perceba nada de música. ainda tive umas aulas no Colégio, onde aprendi a ler uma pauta, tocar flauta e uma série de instrumentos de percussão e onde integrei um coro de vozes femininas. cantávamos em todos os naipes, apenas ao som do piano ou, como tantas vezes me calhou, a capela, na missa. os instrumentos estavam reservados às aulas de música e, pelo menos nos anos em que dele fiz parte, não entravam no coro. é possível que a minha breve participação neste coro, contudo, tenha vindo a definir, com maior relevo que aquele que conscientemente lhe atribuo, as minhas preferências musicais. sou ferozmente atraída para uma música de expressão arcaica, que se entremeia com a natureza e com o que há de mais arraigado em nós. nisso, sou coerente até pela escolha de música pop/rock que mais tarde vim a ouvir, onde encontrei muitas vezes ecos do género erudito e do folclórico. o jogo do tempo na música é simultaneamente físico e emocional: vem do interior do corpo, dos nossos ritmos de vida e pertence-nos tanto quanto não nos pertence, trazendo-nos por vezes uma parte de nós que nos falta, como o silêncio.
17 de novembro de 2017
16 de novembro de 2017
15 de novembro de 2017
um sono de chumbo, não sei se de morte se amoroso, cobre-me de forma pueril e embala-me. enquanto na superfície a calma tem tanto de absoluto como de terror, nada tem de limpo a minha vigília, mas sim de turvo e leitoso. embora encerre o indício preciso de uma regularidade obsessiva, este sono tem tanto de insolente como de melancólico: como a lira de Orfeu, a sua hierarquia interna dissolve sem azáfama os tormentos dos condenados e silencia a natureza.
14 de novembro de 2017
há anos atrás, escrevi na parede da minha cozinha com uma caneta de acetato: NEM DEVER, NEM CULPA, NEM NECESSIDADE. num dos almoços que fiz com amigos cá em casa, uma das convidadas sentou-se perto dessa parede. atenta e curiosa, mal se tinha sentado já me perguntava, com uma voz delicada, muito magra, os olhos mais sujos de tinta do que pintados, porquê a necessidade? porque se precisa?, retorqui, um pouco provocadora, um pouco a achar que podia ensinar alguma coisa. depois de pensar um pouco, perguntou-me se era de coisas materiais de que falávamos. respondi-lhe que acho errado fazer-se o que quer que seja por dever, por sentimento de culpa ou por necessidade. o interesse jaz sob os nossos atos de formas não visíveis, contudo, profundamente transformadoras e é preciso estar sempre a desfazer aquilo que se constrói. satisfeita com a resposta, sorriu levemente, como se tivesse sido subitamente aliviada de um peso de séculos. foi porém nesse momento que realizei que ninguém que entre na minha cozinha pergunta sobre o dever ou sobre a culpa. e não é tanto que essas palavras estejam carregadas de negatividade, mas porque é que a necessidade não está também. o que é a necessidade? pode ser caracterizada por uma falta, como é o caso da pobreza, como um ato de força maior, coisa impossível de evitar, ou pelo seu lado biológico, no caso da urina e das fezes. em todas essas determinações, esquecemo-nos no entanto da sua oposição a contingente e livre. na Metafísica, Aristóteles define como necessidade aquilo que não pode ser ou deixar de ser ou ser de outra maneira, como respirar e comer. a necessidade é aí, também, condição de alcançar o bem e de evitar o mal e ainda, o que nos é imposto contra vontade. necessários são por outrem o espaço e o tempo, categorias definidas por Kant na sua Crítica, que assim as predica como universais. ora, oposto a universal, está o particular, o indivíduo, com a sua constelação de maneiras amorais. o espaço e o tempo são relativos a este e não o contrário: ninguém está no espaço e no tempo, são o espaço e o tempo que estão em nós. a necessidade é vista como positiva, porque o esquecemos.
12 de novembro de 2017
eu era a única rapariga no grupo. íamos sempre à Praça e depois sempre ao mesmo café, num beco perto de minha casa. o café tinha duas salas, a primeira com mesas e balcão, mais pequena e escura, a segunda com jogos, fortemente iluminada. jogávamos snooker, tetris e matraquilhos, bebíamos cerveja, comíamos tremoços. as nossas bandas eram os The Cure, os Stone Roses, os Violent Femmes, os Joy Division, os Velvet Underground, os Pixies. quando a minha irmã começou a namorar com um dos meus amigos, eu ainda pensava que não era nem bonita nem interessante, simplesmente não pensava nisso, era uma entre iguais. estava longe de imaginar por isso que, quando um dos rapazes me convidou para ir dar um passeio, tinha outra carta na manga. fomos de noite, no carro dele, conduziu até sairmos da cidade, atravessando a aldeia onde ele vivia até chegar ao campo. entrou com o carro por um caminho de terra e estacionou no meio das oliveiras. quando saímos do carro, eis que tira uma guitarra da bagageira e começa a tocar. não fazia a mais pequena ideia que sabia tocar. cantou o Sweet Jane, e bem. no fim, perante a minha estupefação, beijou-me. estava frio, a lua brilhava. disse-lhe que nunca tinha pensado que ele me achasse piada e ele respondeu com um elogio que me coíbo de reproduzir. surpreendeu-me que, para além da sua galanteria, houvesse também respeito na atitude dele. não andámos muito tempo, éramos amigos mais do que amantes, mas foi com ele que vivi o que de mais próximo conheço à tranquilidade numa relação amorosa. havia entre nós uma delicadeza e um sentido de proteção que não voltei a encontrar. eram, no entanto, apenas aparentemente significativos. a paixão nunca é neutra, necessita de qualquer coisa de desumano para se pronunciar. quando acabámos, a minha mãe ficou um pouco desiludida, percebi que esperava que casasse com ele. secretamente, contudo, eu tinha percebido que preferia lugares ambíguos, incompreensíveis até, mais arbitrários, irregulares e imprecisos. era aí que irremediavelmente podia aperfeiçoar o meu poder.
10 de novembro de 2017
não sou culta. a vontade e a determinação necessárias para fugir ao mundo, refugiando-me nos livros, nos cinemas ou nas conferências, nunca foram mais fortes do que a satisfação de o compreender através da intuição da experiência direta, à exceção porventura da infância, cuja grande parte foi vivida com a cabeça enfiada em livros de toda a espécie, trazidos da biblioteca ou escolhidos de uma das estantes onde o meu pai os guardava. mesmo aí, deixava-me absorver por todo o tipo de contemplações, como por exemplo das expressões das pessoas numa conversa, de quadros, da luz ou da rua deserta à noite. embora aborde as coisas com enorme curiosidade, a minha imaginação, necessária para reter qualquer tipo de informação, é abstrata e mítica, com pouca consideração pela verdade no seu sentido técnico ou histórico. tenho pena, sobretudo nas fases em que escrevo pouco, pois sinto a falta de um corpo de ideias, e tenho vergonha, pois fico excluída da comunidade. é nessas alturas que procuro atualizar-me sobre os acontecimentos mundiais, sobre música, gramática e vocabulário na minha ou noutras línguas, filosofia, artes plásticas, poesia, literatura, política e até mesmo informática. fora isso, não tenho televisão, deixei de comprar jornais e, embora leia algumas notícias na internet, no melhor dos mundos vou menos ou deixo de ir ao facebook, leio mais, escrevo mais, observo mais, oiço a mesma música vezes seguidas dias a fio, desenho, lanço-me.
a cultura é uma dádiva. há contudo uma diferença entre o que e o quê: o conteúdo é sempre mais importante do que o como. daí que não importe quem escreveu nem como escreveu, mas sim o que escreveu. a complexidade e a simplicidade são encontros vindos dos lugares mais surpreendentes, que podem deparar-se com a doçura da nossa aceitação ou com o desdém da nossa recusa que, em momentos diferentes da vida, vamos experimentando. que peso têm as nossas escolhas nesse processo? até que ponto não estamos condenados a ficar carentes da completa erudição por impotência? quando escrevo, o conhecimento brota espontaneamente do silêncio e sou como um vidente que trilha pela noite. há palavras que surgem sem eu as conhecer e que, como pura magia, dão a ver o mundo como ele existe em nós, revelando quer os espaços esquecidos quer os que mais nos atormentam e ainda, entre uns e outros, tão significativa que é, a panóplia de lugares-comuns, banais, secretos, que constituem a nossa vida interior. a minha metodologia é insensível a justificações, de forma, pode dizer-se, intolerável. até o homem mais hábil e informado se sente inseguro a perscrutar o passado ou a prever o futuro: a história é sempre confusão e escrúpulo, como um sonho.
nos bons e velhos tempos, a sedução costumava começar por uma troca de olhares. agora não se passa à ação sem saber pelo menos as preferências musicais no spotify, a escolha de enquadramentos e temas para o instagram, com quem se dá no facebook e os trabalhos que fez no linkedin. o olhar virgem, penetrante e revelador, provavelmente um dos maiores mistérios da vida, arrisca-se a cair em desuso num futuro próximo e a ser substituído por qualquer coisa parda e desbotada.
5 de novembro de 2017
à medida que envelhecem, os casais tornam-se progressivamente menos despudorados, disfarçando os gestos de carinho em público ao contrário dos adolescentes, que os exibem ostensivamente, de forma por vezes provocatória, como se dissessem a alto e bom som «já não sou criança». o lugar público do desejo é tanto maior quanto se desconhece ainda em rigor os instrumentos da sua intensificação e tanto menor quanto são postos em causa, embora subtraí-los aos outros, ocultá-los, não signifique subtrair-se a si próprio. a absoluta naturalidade é uma necessidade tão nítida como um pesadelo e a intimidade, na sua excitada beatitude, é insuportavelmente silenciosa. o que se faz por prazer tem uma dimensão trágica, uma corrente inesperada que nos envolve num turbilhão fulgurante e efémero.
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