26 de agosto de 2016
li há tempos um artigo onde se afirmava que a música que se ouve enquanto se escreve influencia o tom da escrita. fiquei a pensar na música que oiço, quando oiço, enquanto estou a escrever e em porque é que certos textos exigem um silêncio total — e que têm sido justamente os mais pujantes. é curioso que nunca tenha pensado sobre isso. o que sempre me pareceu influenciar a escrita de modo decisivo foi a paisagem. a paisagem perante a qual escrevemos impregna de tal modo o texto que se torna praticamente impossível separar o conteúdo do discurso da paisagem perante se está. lembro-me sempre da Marguerite Duras, que escreve sobre a morte de uma mosca, creio que numa dispensa. são textos de uma enorme concisão, condensados, que refletem o seu isolamento, de resto voluntário. escrever com o desespero, diz ela. mas sobretudo: «Il y aurait une écriture du non-écrit. Un jour ça arrivera. Une écriture
brève, sans grammaire, une écriture de mots seuls. Des mots sans
grammaire de soutien. Egarés. Là, écrits. Et quittés aussitôt.». e logo a seguir «J’ai fait des livres incompréhensibles et ils ont été lus.». é uma paisagem feita de nada, um nada irredimível, a partir do qual as palavras se inscrevem. Kafka também dizia qualquer coisa sobre esse nada: «I need solitude for my writing; not 'like a hermit' — that wouldn't be enough — but like a dead man.» e (numa carta a Milena Jesenska) dizia que precisava de silêncio para tentar «(...) communicate something incommunicable, to
explain something inexplicable, to tell about something I only feel in
my bones and which can only be experienced in those bones.». há aqui qualquer coisa de luto, com uma impressiva qualidade de purificação. de quê, não sei exatamente, mas arriscaria a dizer da História. como se a paisagem daquele que escreve permanentemente se retirasse do tempo e daquilo que nele se produz, e no entanto, não como uma paisagem que negue o tempo e a História, pois aquilo que não afirma não pode negar. o incomunicável, o inexplicável, o não-escrito, o sem gramática, o incompreensível, constituem uma paisagem devastada — ou inflamada — por uma frágil desrealização onde tudo apela ao dizer. nem sei se esta palavra, apelo, é a mais justa. será antes uma exigência, anónima, violenta na sua imposição e com leis inflexíveis, que consome quem se dispõe a ouvi-la. aí, os métodos interessam apenas na medida em que não se pode falhar.
17 de agosto de 2016
devia ter cerca de doze anos quando participei num concurso de poesia, organizado pelas Guias de Portugal, de que eu fazia parte, e pelos Escuteiros. escrevi um longo poema, a meu ver muito mórbido e sombrio, que, para minha surpresa e aflição, descobri depois ser obrigatório decorar. nessa altura eu queria conhecer um rapaz mais velho, o mais bonito de todos os rapazes, que era neto da minha professora de música. decidi que ele tinha de participar de alguma forma e propus que o poema fosse acompanhado ao piano: ele tocava piano e foi imediatamente sugerido como solução à minha grande ideia. perto do acontecimento, tivemos alguns ensaios, altura em que tinha planeado chegar à fala com ele. os ensaios eram no palco onde se realizaria o concurso. eu entrava pela frente do edifício, entrava na sala e subia as escadas para o palco, mas ele vinha dos bastidores, com as suas teclas, nariz no chão e semblante contrariado. mal trocámos duas palavras no conjunto de todos os ensaios. a professora de música dava-lhe instruções, eu declamava várias vezes o poema ainda a seguir a escrita. no dia da apresentação estava tão nervosa que quis desistir e na altura de subir ao palco tive a sensação de me partir em pedaços. subi, encaminhei-me para o meio e olhei para a plateia. cheia, repleta, a transbordar de olhares que não reconheci. comecei a declamar o poema e pelo meio esqueci-me da frase mais importante, justamente a que lhe dava sentido, mas era impossível voltar atrás. nesse momento comecei a chorar compulsivamente, continuando a dizer o poema até ao fim. quando mais tarde anunciaram os prémios, chamaram-me. eu, incrédula e envergonhada, queria confessar que me tinha esquecido de uma parte e portanto não merecia ganhar nada. explicaram-me então que não iria ganhar o primeiro prémio porque o meu poema não tinha respeitado uma das regras do concurso, que era falar sobre a Nossa Senhora. eu não fazia ideia que era preciso falar da Nossa Senhora e fiquei contente por não o ter feito, porque não tinha nada a dizer sobre ela. depois disseram-me que a qualidade do poema não podia passar despercebido bem como a emoção com que tinha sido dito e portanto ficaria em segundo lugar, com o acordo de todos os membros do júri. recebi uma estatueta e a plateia aplaudiu de pé. e eu ali fiquei a pensar que só chorei porque me enganei a dizê-lo, sem poder dizê-lo a ninguém. nem sei se agradeci. deram-me umas flores, rosas vermelhas. pensei qualquer coisa sobre a vida enquanto aquela gente toda aplaudia de pé. que provavelmente era aquilo, um bueiro de logros. não se pode gritar: enganei-me e vocês não perceberam nada do poema, estão a aplaudir a quê?
gosto de pintura desde criança mas não sei por que motivo a minha sensibilidade se especializou num certo tipo de pintura, de grande depuramento visual. digo visual e não estético, não por acaso. uma depuração estética encontra-se por exemplo nos trabalhos do construtivismo russo, na Bauhaus, no Neoplasticismo, como por exemplo no Mondrian, cuja pintura é puramente racionalista na depuração das formas. o que me fascina na pintura é comum a artistas como Vincent Van Gogh, Giorgio Morandi, Vilhelm Hammershøi, Frida Kahlo, David Hockney e Francisco de Zurbarán. qualquer coisa nessas pinturas as excede, atravessando as décadas e os centenários, contando uma história do silêncio, da alegria, da limpidez e da inocência, creio que esta palavra é fundamental. mas há nelas outra coisa, algo que não está presente por exemplo em Claude Monet ou em Edward Hopper. trata-se talvez de uma abstração formal que serve a reflexão existencial, filosófica, especialmente quando representam o quotidiano. quando Hopper pinta Sol da manhã, nós não somos aquela mulher. ela está sozinha e assim permanecerá para sempre, a apanhar sol pela manhã, porventura acompanhada apenas pelo pintor. mas, mesmo representadas de costas, nós somos as mulheres de Vilhelm Hammershøi e a grande banalidade das suas vidas.
16 de agosto de 2016
ao longo da minha infância e adolescência, tinha um grande espírito missionário. não só achava que me estava destinado viver coisas maravilhosas, como achava que a minha vida tinha um propósito que, mais cedo ou mais tarde, iria desvendar-se diante de mim. agora pergunto coisas como «qual é a relação entre a solidão e a liberdade» e não obtenho respostas, como se o mundo tivesse fechado a sua porta, contanto sejam palavras com um significado profundo. a pobreza infligiu talvez demasiados danos no meu espírito, tudo me parece em vão. as perguntas e os acontecimentos deixaram de ter o poder de mudar a vida. nenhum exemplo admirável transforma a força das emoções. hoje interessam-me os assuntos sobre os quais as pessoas não falam abertamente e todos os deveres me parecem fictícios. essas inibições e persuasões são preponderantes sobre as perguntas, embora por vezes acabem por se mostrar interligadas. quando queria fazer muitas coisas, achava sempre que não teria tempo. agora nunca penso isso, pelo contrário, o que me permite concretizar algumas coisas. a prática tomou preponderância sobre o sentido da vida, que há muito se esfumou.
disseram-me há tempos que devemos atribuir grande importância às quebras de linha nos poemas, ou seja, à decisão de fazer daquelas palavras um verso. ora, a grande maioria dos poemas que escrevi não tem qualquer quebra de linha. pergunto-me o que isso quererá dizer. será que tudo quer sempre dizer alguma coisa?
15 de agosto de 2016
nunca se sabe quando uma decisão não se torna o início de uma catástrofe. o fogo de artifício soa ao longe, os cães chiam, carros passam sobre a ponte em dois sentidos, aparentemente tudo está bem. mas num momento tudo muda, o silêncio expande-se, as pontes caem e nós, sem sabermos como, encontramo-nos em becos sem saída. contudo, o que é o amor senão um beco sem saída?
14 de agosto de 2016
Gosto do meu trabalho nas urgências. Sangue, ossos, tendões parecem-me afirmações. Fico fascinada com o corpo humano, com a sua resistência. Graças a Deus — porque as radiografias e a petidina vão demorar horas. Talvez seja mórbida. Fico fascinada com dois dedos num saquinho, com a navalha de ponta e mola reluzente a sair das costas de um chulo. Gosto do facto de, nas urgências, tudo poder ser remediado, ou não.
Códigos Azuis. Bem, toda a gente adora os Códigos Azuis. É quando alguém morre — o coração pára de bater, eles param de respirar —, mas a equipa das urgências pode, e muitas vezes consegue, ressuscitá-los. Mesmo que o paciente tenha uns oitenta anos estafados, é impossível não se ficar empolgado com a emoção do processo, pelo menos durante um tempo. Salvam-se muitas vidas, vidas jovens e proveitosas. (...).
Os ciganos são mortes boas. Eu acho... as outras enfermeiras não, e os seguranças também não. Há sempre dezenas deles que exigem estar com o moribundo, que o beijam e o abraçam, a desligar e a estragar os televisores e os monitores e o resto dos aparelhos. A melhor coisa nas mortes ciganas é eles nunca mandarem calar os miúdos. Os adultos clamam e choram, mas todas as crianças continuam a correr e a brincar e a rir, sem que lhes seja dito que devem estar tristes ou mostrar-se respeitosas.
Lucia Berlin, Bloco de notas das urgências, 1977, in Manual para mulheres de limpeza.
Códigos Azuis. Bem, toda a gente adora os Códigos Azuis. É quando alguém morre — o coração pára de bater, eles param de respirar —, mas a equipa das urgências pode, e muitas vezes consegue, ressuscitá-los. Mesmo que o paciente tenha uns oitenta anos estafados, é impossível não se ficar empolgado com a emoção do processo, pelo menos durante um tempo. Salvam-se muitas vidas, vidas jovens e proveitosas. (...).
Os ciganos são mortes boas. Eu acho... as outras enfermeiras não, e os seguranças também não. Há sempre dezenas deles que exigem estar com o moribundo, que o beijam e o abraçam, a desligar e a estragar os televisores e os monitores e o resto dos aparelhos. A melhor coisa nas mortes ciganas é eles nunca mandarem calar os miúdos. Os adultos clamam e choram, mas todas as crianças continuam a correr e a brincar e a rir, sem que lhes seja dito que devem estar tristes ou mostrar-se respeitosas.
Lucia Berlin, Bloco de notas das urgências, 1977, in Manual para mulheres de limpeza.
o envelhecimento sobrepõe-se à nossa vontade e não é possível falar dele senão como uma fase de desenvolvimento. os auto-retratos confessionais excedem o sentido da vida e tornam-se depoimentos de sobrevivência onde o Belo e o Feio exercem a sua autoridade. as raízes, a família, o conhecimento, criam, afinal, espaços de onde desaparecemos, a identidade organizando-se como uma malha desadequada, apenas um reflexo dessa entrega, ainda assim em constante renovação. em última instância, o que está em causa não é a natureza do tempo mas sim a variedade da fome e o seu funcionamento transgressivo na nossa história.
8 de agosto de 2016
5 de agosto de 2016
da forma como aquilo aconteceu, ficou convencido de que não mudara completamente, embora acreditasse que tudo o que ela disse era verdade. caminhavam devagar sobre a relva bravia. é preciso cortá-la, disse-lhe. temos de arranjar uma máquina, respondeu ela, achas que podemos pedir emprestada a alguém? um pouco ansioso disse-lhe que deviam ter dinheiro para pagar a um jardineiro e comprar uma. ela notou. perguntou-lhe se alguma coisa não estava bem. ele fitou-a nos olhos e sorriu na obscuridade. os olhos dela eram profundos e venenosos quando estava desconfiada. vais-me deixar?, perguntou. ainda não.
4 de agosto de 2016
Balada Amarilla IV
Sobre el cielo
de las margaritas ando.
Yo imagino esta tarde
que soy santo.
Me pusieron la luna
en las manos.
Yo la puse otra vez
en los espacios
y el Señor me premió
con la rosa y el halo.
Sobre el cielo
de las margaritas ando.
Y ahora voy
por este campo
a librar a las niñas
de galanes malos
y dar monedas de oro
a todos los muchachos.
Sobre el cielo
de las margaritas ando.
Federico García Lorca
Sobre el cielo
de las margaritas ando.
Yo imagino esta tarde
que soy santo.
Me pusieron la luna
en las manos.
Yo la puse otra vez
en los espacios
y el Señor me premió
con la rosa y el halo.
Sobre el cielo
de las margaritas ando.
Y ahora voy
por este campo
a librar a las niñas
de galanes malos
y dar monedas de oro
a todos los muchachos.
Sobre el cielo
de las margaritas ando.
Federico García Lorca
3 de agosto de 2016
31 de julho de 2016
Il me semble que, chez un poète, les hallucinations auditives sont en quelque sorte une maladie professionnelle. Les poèmes naissent ainsi – cette idée se retrouve chez de nombreux poètes, chez Mandelstam comme dans le ‘Poème sans héros’ de Akhmatova : on entend résonner dans ses oreilles une phrase musicale obsédante, floue d’abord, précise ensuite, mais encore sans paroles. J’ai eu plus d’une fois l’occasion de voir Mandelstam essayer de se débarrasser d’un air obsédant, d’y échapper… Il secouait la tête comme s’il avait pu le faire comme une goutte d’eau entrée dans son oreille pendant le bain. Mais rien ne pouvait le faire taire : ni le bruit, ni la radio, ni les conversations dans la même pièce. Akhmatova a raconté comment, lorsque lui était venu son ‘Poème sans héros’, elle était prête à faire n’importe quoi pour s’en débarrasser. Elle s’était même mise à faire la lessive, mais rien n’y fit. À un moment donné, des mots surgissaient dans la phrase musicale, et alors les lèvres commençaient à remuer. Il doit y avoir quelque chose de commun entre le travail du compositeur et celui du poète, l’apparition des paroles étant le moment critique qui distingue ces deux formes de création. Parfois, un motif venait à Mandelstam pendant son sommeil, mais une foi réveillé, il ne se souvenait plus des vers qu’il avait composés en rêve. J’avais l’impression que les vers existaient avant d’avoir été composés. (Mandelstam ne disait jamais qu’il avait “écrit” un poème. Il le “composait”, puis le notait.) Tout le processus de la composition consistait à capter avec attention, puis à rendre manifeste l’unité de l’harmonie et du sens préexistante et venue on ne sait d’où, qui se matérialisait peu à peu dans des mots. Le dernier stade du travail consistait à nettoyer le poème des mots fortuits, n’appartenant pas au tout harmonieux avant qu’il se manifestât. Ces mots qui s’étaient glissés par hasard avaient été utilisés à la hâte, pour remplir des blancs au moment où l’ensemble prenait forme. Ils étaient là, et les supprimer était un gros travail. Au dernier stade, il fallait s’écouter douloureusement soi-même, pour trouver cette unité objective et parfaitement exacte qu’on appelle un poème. […] Dans le travail de création poétique, j’observais deux “soupirs de satisfaction” et non pas un : le premier, lorsque apparaissaient les premiers mots d’un vers ou d’une strophe, et le second lorsque le dernier mot précis chassait les intrus qui avaient pénétré dans le poème par hasard. Alors le processus d’écoute de soi-même, celui-là même qui préparait le terrain au dérèglement de l’oreille interne, à la maladie, s’arrêtait. Le poème semblait alors se détacher de son auteur et cesser de le torturer par son bourdonnement. Le possédé était libéré. Io, la pauvre vache, avait échappé à la guêpe. Si le poème “ne se détache pas”, disait Mandelstam, c’est qu’il y a en lui quelque chose qui ne va pas, ou bien qu’il reste “encore quelque chose de caché”, c’est-à-dire un bourgeon d’où cherche à percer une pousse nouvelle ; autrement dit, le travail n’est pas terminé. Lorsque la voix intérieure s’était tue, Mandelstam avait hâte de lire son nouveau poème à quelqu’un.
Nadejda Mandelstam, «Maladie professionnelle», Contre tout espoir.
28 de julho de 2016
em agosto, escreveu: «tenho de evitar o instante a qualquer preço». esta ideia, transformava completamente a sua noção dos corpos, da infância, da loucura e da morte. o que é diabólico deve permanecer incompreensível e isso parecia-lhe agora completamente evidente. dito de outra maneira, a honra, mas também o horror, deixam ambos efeitos devastadores. uma liberdade estranha, como um fogo ou uma malícia, chegou-lhe para companhia e percebeu que aquele era o lugar do segredo que a língua possui. a glória exibe-se mas a verdade é impassível.
27 de julho de 2016
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